Arqueologia do lixo

Revelações do aterro

Pesquisadora investiga mudanças na vida da população belo-horizontina, nas últimas décadas, com base na composição do lixo domiciliar

Encobertas por camadas de terra e por uma vegetação que cresceu nos últimos dez anos, toneladas de lixo descartadas de 1975 a 2007 podem revelar padrões de consumo, uso e descarte de objetos que mostram aspectos da vida da população de Belo Horizonte. Ao investigar a arqueologia do lixo da capital mineira com elementos comparativos de três décadas, a pesquisadora Vanúzia Gonçalves Amaral espera enxergar não apenas mudanças econômicas, políticas e culturais, mas também aspectos simbólicos desse agrupamento humano.

“É possível olhar para aquele período como se fosse um filme, considerando o lixo em um contexto de uso e de descarte que detém significados e padrões”, explica a pesquisadora, que está na fase de separação e análise dos objetos escavados no lixo depositado entre 1975 e 1985 no aterro sanitário localizado no km 2 da BR-040. A área de cem hectares, 60 dos quais usados como aterro de lixo domiciliar, é administrada e monitorada pela Prefeitura de Belo Horizonte. Apesar de desativado como aterro de resíduos sólidos urbanos desde 2007, o lugar continua a gerar gases e poeiras. Além disso, no local são realizadas outras atividades, como manutenção de máquinas e caminhões, reciclagem de entulho e compostagem. 

A pesquisa de doutorado de Vanúzia Amaral, em desenvolvimento no Programa de Pós-graduação em Antropologia e Arqueologia da Fafich, sob a orientação da professora Jaqueline Rodet, propõe estudos similares a projeto conduzido na Universidade de Tucson, Estados Unidos, na década de 1970, pelo arqueólogo William Laurens Rathje. “Ele demonstrou que, por meio do lixo, é possível identificar padrões de consumo e de descarte que dizem muito mais a respeito das pessoas do que elas gostariam”, afirma a pesquisadora que, no mestrado em Ciência Política, também na UFMG, estudou o mesmo equipamento urbano do ponto de vista do conflito político gerado por sua localização.

Retrato de uma época

Latas de cerveja ferrosas encontradas no aterro sanitário de Belo Horizonte
Latas de cerveja ferrosas encontradas no aterro sanitário de Belo Horizonte Júlia Duarte / UFMG

Antes mesmo de alcançar as próximas etapas de escavação e análise – 1986 a 1995 e 1996 a 2007 –, Vanúzia já identificou cenários que certamente não se repetirão no lixo das décadas seguintes: objetos de vidro bem mais espessos do que os produzidos nos anos seguintes, latas de cerveja ferrosas, que posteriormente foram substituídas por alumínio, e a ausência de isopores, garrafas pet e embalagens longa vida. 

“Quando fizer a escavação dos anos 2000, certamente terei um padrão comparativo mais refinado, mas já podemos dizer que, diferentemente do que se costuma pensar, o plástico era largamente utilizado nos anos 70, como é possível perceber pela grande quantidade desse material presente nas amostras”, comenta a pesquisadora. Outro padrão que se mantém até hoje é a prática de descartar o lixo sem separação por tipo de material, apesar do surgimento, nos últimos anos, de práticas de grande alcance, como o trabalho das associações de catadores, e de algumas iniciativas governamentais de coleta seletiva.

Entre os milhares de itens encontrados, alguns falam por si mesmos, como um anúncio de jornal, datado de 8 de setembro de 1978, que anuncia vaga para datilógrafa “de boa aparência”. “Todos os objetos, contudo, precisam ser observados em relação a contextos culturais, políticos e econômicos específicos”, diz a pesquisadora. Nessa primeira amostragem, aparecem embalagens de apenas uma marca de leite, uma de margarina e poucas de óleo de soja. A composição do lixo domiciliar provavelmente será diferente nas amostras relacionadas ao período de aterramento posterior a 1990, em razão da abertura do país para importações, no governo Collor, principalmente de produtos chineses. 

A pesquisadora espera encontrar outras matérias-primas, como plásticos de tipos e cores diferentes. Segundo ela, o comportamento do consumidor é moldado tanto por determinações políticas e econômicas, quanto por questões subjetivas, que podem, por exemplo, levar pessoas a não descartar certos objetos que têm valor sentimental e significados particulares ou familiares. As próximas fases da pesquisa preveem também análises químicas em laboratório, para determinar alguns componentes dos resíduos que não são identificáveis apenas por análises visuais. 

O aterro
O aterro da BR-040 foi aberto para a destinação dos resíduos da cidade depois que uma das áreas que recebiam o lixo de Belo Horizonte foi atingida por enchentes e deslizamentos em dois anos consecutivos (1972 e 73), provocando muitas mortes. A área começou a funcionar como aterro sanitário em 1975, recebendo 250 toneladas de lixo por dia. 

Em 2007, quando foi desativado por falta de espaço, o local recebia diariamente duas mil toneladas. A ampliação ocorreu devido ao crescimento da cidade e da população, ao aumento da geração de lixo per capita e da cobertura de coleta, que hoje alcança 98% da cidade, explica Vanúzia Amaral, que é funcionária da Superintendência de Limpeza Urbana de Belo Horizonte (SLU), onde atua no gerenciamento de projetos e na implementação de políticas relacionadas aos serviços de coleta seletiva de recicláveis, com inclusão social de cooperativas e associações de recicladores e atividades de educação ambiental.

Ana Rita Araújo