Os cientistas e a política
Nas últimas semanas, como há muito não se via, um número expressivo de instituições científicas brasileiras veio a público se manifestar em relação à crise política que vive o país. Da mais tradicional delas, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC, às mais recentemente criadas, todas se posicionaram em defesa do estado de direito, da democracia e das políticas públicas desenvolvidas pelo governo federal nos últimos anos.
O fato de os cientistas manifestarem uma posição no espaço público retoma uma longa tradição de inserção dos intelectuais nas disputas pelos sentidos no mundo social, tradição que, não por acaso, fez dos manifestos um dos mais importantes repertórios de atuação política desse grupo social.
Como demonstram as pesquisas e reflexões no âmbito das ciências sociais, o pensamento político mobilizado para e na intervenção no espaço público não é peça doutrinária, mas constitui-se de repertórios de que os indivíduos e grupos lançam mão para dar legitimidade e eficácia à sua ação. Ou seja, no que se diz sobre a crise e como se diz – suas razões e suas saídas –, coabitam vários discursos e doutrinas políticas, não necessariamente coerentes entre si e conscientemente articuladas. Isso pode ser percebido com grande evidência nas inúmeras manifestações que temos acompanhado nas últimas semanas.
A intensa presença dos cientistas brasileiros nas páginas dos jornais e revistas e, sobretudo, na internet e nas redes sociais, nas últimas semanas, tem um componente importante: ela contraria os diagnósticos de que os cientistas, assumindo o papel de especialistas, haviam-se afastado definitivamente dos debates políticos que se travam na esfera pública. E isso é alvissareiro.
Como se sabe, há, no Brasil, uma longa tradição de os cientistas participarem dos debates públicos e, sobretudo, de contribuírem decisivamente na elaboração e operacionalização das políticas públicas. No entanto, com a maior profissionalização e especialização da pesquisa e dos pesquisadores nas últimas décadas, observamos, por um lado, significativo aumento da produção científica e, por outro, a crescente captura dos pesquisadores pelos modos de consagração acadêmicos, o que os levou a se afastarem da vida pública.
Desse afastamento acabou resultando, inclusive, a recusa, explícita ou implícita, por parte de parcela significativa dos cientistas, em discutir a própria política científica que, assim, acabou ficando a cargo de poucos grupos ou indivíduos que historicamente lograram ocupar posições-chave no conjunto do sistema de ciência e tecnologia nacional.
Por isso, a irrupção coletiva das instituições científicas no espaço público, sobretudo daquelas de representação dos pesquisadores das ciências humanas e sociais, deve ser saudada como um importante acontecimento nesses tempos de incertezas. As manifestações demonstram que, a par de uma crescente profissionalização e especialização, os cientistas sociais e das humanidades continuam atentos ao que ocorre no espaço público e aos perigos que rondam nossa democracia e o nosso estado de direito.
Todavia, se, em nosso país, é verdade que houve certo recolhimento dos cientistas em relação à atuação no espaço público, não se pode dizer o mesmo no que se refere às políticas públicas. Nessa dimensão da vida social brasileira, eles continuaram tendo grande relevo, sobretudo por meio de suas organizações científicas que, não poucas vezes, foram mobilizadas como grupos de pressão e fonte de estudos e instrumentos que fundaram novas formas de conceber e fazer as políticas públicas. Esse traço, além de demonstrar a vitalidade da produção científica brasileira em sua interlocução com as políticas públicas, atesta que os cientistas podem colaborar, por meio da produção de conhecimentos e tecnologias, com o desenvolvimento socioeconômico e cultural brasileiro.
Nessa perspectiva, as instituições de congregação dos cientistas, a par de sua constituição como modo de intervenção e consolidação do campo científico-acadêmico no país, parecem ter-se tornado também importante espaço de sociabilidade e de elaboração de sensibilidades próprias ao espaço público, ou seja, à política. É claro que tal intervenção não se funda e se sustenta no campo político, mas no campo científico-acadêmico de onde os cientistas retiram sua autoridade e competência. No entanto, essa ação que mobiliza os pesquisadores é, per si, política e se funda na ideia de uma responsabilidade cidadã e, portanto, pública com os destinos de nosso país. A figura do cientista não anula ou obscurece a figura do cidadão, antes a expressa de forma específica, mas inequívoca.
Será uma pena se essas manifestações forem apenas esporádicas e, passada a crise, as instituições científicas cessarem as iniciativas de se comunicarem com um público que transcende o nicho especializado que representam. Também será lamentável se as instituições científicas das demais áreas, notadamente das chamadas “ciências duras”, continuarem caladas diante da crise. A ideia de que a manifestação política não é coisa para os “cientistas de verdade” é tão tola como a noção de que a ciência não deve ser assunto de “político profissional”. Nos dois casos, perderá o Brasil e, sem dúvida, ficará mais pobre a própria ciência brasileira.
*Professor titular da Faculdade de Educação e coordenador do Projeto Pensar a Educação Pensar o Brasil – 1822/2022