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Ciência, Democracia e Universidade

Em coluna intitulada Ciência, democracia, regime (Correio Braziliense, de 17/06/2015), Ari Cunha defendeu argumento pertinente: “É possível existir ciência sem democracia? Infelizmente, sim. Da mesma forma, é possível a existência da arte na ausência de ética. Mas a ciência, como arte humana do saber, não pode prescindir da ética democrática. Se existe relação entre a ciência e a democracia, ela está no fato de que o exercício do saber humano encontra na liberdade de pensamento e ação o principal estímulo e o catalisador. Ou seja, ao respirar ares menos poluídos pelo cerceamento de ideias, a ciência flui e cresce naturalmente”.

Defender o regime democrático como princípio essencial para o desenvolvimento do ofício científico passa fundamentalmente pela promoção das oportunidades de formação superior para um incontável contingente de pessoas antes privadas de tê-las, sem resultar no perecimento da qualidade de ensino e aprendizagem. Fica a pergunta: como a instituição, nascida para atendimento cultural das elites, poderá se reciclar a ponto de popularizar sua matrícula e deixar as lições do saber pelo saber, antes transmitidas pela semântica cifrada e codificada da linguagem científica, para aderir ao novo saber pragmático, quase pontual e tecnocêntrico, exigido pelo exercício profissional dos integrantes dessa nossa sociedade industrial e de serviços?

Ao examinar essa questão pelo viés histórico, Paulo Nathanael Pereira de Souza, no texto Desafios à universidade nos novos tempos (Gazeta Mercantil, de 04/11/2008), oferece um painel explicativo com os seguintes dizeres: “Com a afluência das massas às benesses da civilização e a velocidade das mudanças políticas no século 20, as escolas de todos os graus de ensino foram invadidas por multidões de alunos de diferentes origens sociais e capacidades intelectuais. E, em vez de terem reis e papas como mantenedores, passaram as universidades a ser sustentadas por orçamento público e recursos da bolsa dos usuários. Daí que se obrigaram a participar do dia a dia do mundo e a funcionar como centros de fornecimento de recursos humanos qualificados, necessários ao pluralismo laboral dos mercados”.

Na opinião de Gil da Costa Marques, em O papel da universidade (Folha de S.Paulo, de 20/06/2009), “a universidade tem duas funções primordiais. A primeira é expandir as fronteiras do conhecimento e, assim, enriquecer a cultura científica e tecnológica do país. A mais importante, no entanto, é promover a formação de recursos humanos qualificados, os quais são elementos-chave no fomento do desenvolvimento econômico e social”. Convém, contudo, salientar que o conhecimento como parte da formação cultural de uma nação, de um povo, lato sensu, não deve ser entendido simplesmente como forma de uma necessidade técnica,concebida como conjunto de competências e habilidades necessárias às classes dominantes e seu aparato político, ideológico e produtivo. A discussão que se deve realizar é sobre o tipo de cultura, de orientação humanística, de concepção de mundo, de criação de maturidade e capacidade intelectual que queremos ter ao inserir a universidade como elemento do processo de conhecimento, de criatividade e capacitação intelectual, moral, ética e crítica dentro da sociedade civil. 

Isso não quer dizer que os aspectos ideológicos, políticos e econômicos da sociedade de classe não devam ser considerados, pois, além de fundamentais para a formação do conhecimento, interferem profundamente na concepção de homem que se quer formar dentro de uma ideia ampla, transformadora e crítica de orientação humanística da cultura em geral. Esse ponto de vista é iluminado por Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas (1956): “A cabeça da gente é uma só e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total”. Olhar criticamente significa procurar “aumentar a cabeça, para o total”. Implica, portanto, uma atitude humilde e corajosa. Humilde, no sentido de reconhecer nossos limites – só quem reconhece que não sabe, que há ainda muito por ser conhecido, que “as coisas que há são demais de muitas”, empreende uma busca no sentido de ampliar seu saber. E corajosa, porque precisamos ser capazes de compreender o mundo em que vivemos, traduzi-lo em termos compreensíveis para todos e organizá-lo, tendo em vista a realização de uma comunidade política democrática.

A universidade precisa se concentrar na busca amorosa da sabedoria, do saber amplo e aprofundado, tendo em vista o desenvolvimento da atitude crítica. Deve voltar-se para seus objetivos de estudo, vê-los com clareza, com profundidade e com abrangência. Não pode se ancorar em certezas. Ao contrário, seu espaço é o da dúvida, da interrogação constante, do questionamento, da pergunta pelo fundamento, pelo sentido. O empenho universitário deve se mirar no exercício continuado de compreensão, que procura ir além da explicação de caráter utilitário e funcional, porque o mundo é complicado demais para ser vivido e especialmente para ser compreendido. Ele não se revela de imediato, desafia-nos e nos confunde, chega mesmo a atemorizar. Carece de ser pensado, analisado em seus ritmos e determinações para poder ser concebido como um todo plural, e não apenas como amontoado de fragmentos desconexos. Frente ao árduo desafio mencionado, a universidade precisa fazer da angústia do labirinto trampolim para a fundação da liberdade.

* Professor da Faculdade Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG 

Marcos Fabrício Lopes da Silva*