Automáticos e disfuncionais

Amor Cinza

Ariano Suassuna, em sua colaboração no livro O clarim e a oração – cem anos de ‘Os sertões’ (2002), organizado por Rinaldo de Fernandes, deixa uma frase que queima como tainha na brasa: “O que houve em Canudos e continua acontecendo foi o choque do Brasil oficial e mais claro contra o Brasil real e mais escuro”. E encerra com uma frase de Machado de Assis: “Não é desprezo pelo que é nosso, não é desdém pelo meu país. O país real, esse é bom, revela os melhores instintos, mas o país oficial é caricato e burlesco”. Em 1999, o brasilianista norte-americano Thomas Skidmore dizia o seguinte: “São características do brasileiro: não saber e ser oscilante nas suas emoções”. É o ufanismo do conde de Afonso Celso (pré-República): “O brasileiro é o melhor do mundo” ou o derrotismo mais voraz: “O Brasil não vale nada”.

O que tem Euclides da Cunha a ver com o Brasil do nosso tempo? Simples como arroz no prato: o massacre de Antônio Conselheiro e dos seus seguidores só ficou conhecido porque Euclides fez jornalismo de verdade. Sem Os sertões nada teria chegado até nós. A Guerra de Canudos foi o embrião dos sem-terra. Se vivo fosse, Euclides diria hoje: “O martírio do brasileiro, ali, é o reflexo de tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da vida. Nasce do martírio secular da terra”. Urge viabilizar uma dimensão outra que vai além dos mecanismos de concentração de poder, dos rendimentos e da propriedade.

Coexistem em nosso país os avanços tecnológicos e científicos com os atrasos e emperramentos que perpetuam os calvários da sociedade; pela riqueza de muitos em detrimento da pobreza e da miséria da grande maioria. As grandes disputas sociais, envolvendo emoção, alguma ideologia, sentimentos e até lágrimas, em breve, não se darão exclusivamente entre o capital e o trabalho, mas entre ter ou não ter conhecimento. Essa nova manifestação de capital cria e desenvolve novíssimas tecnologias que tendem a tornar mais profundo e terrível o abismo que separa nações e pessoas. 

Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum supera em importância e gravidade a educação. Segundo as estatísticas oficiais, o país tem 15 milhões de analfabetos, 32 milhões de pessoas não completaram cinco anos de estudos e 79 milhões não terminaram o ensino fundamental. Desse modo, o país entra numa corrida entre a educação e a catástrofe. É justamente o conhecimento que faz prosperar as sociedades, permite a utopia dos sonhos, aproxima pessoas e arrasta multidões pelo gesto devastador do exemplo, ao mesmo tempo que possibilita a igualdade.

Cabe notar que a cultura brasileira é marcada por não poucas contradições: de um lado, um acentuado subjetivismo, exaltação do individualismo e das chamadas liberdades individuais; de outro, um sentimento espontâneo de solidariedade, de exercício do bem comum. De um lado, a exasperação do hedonismo e do consumismo; de outro, a busca constante da simplicidade da vida, de certo despojamento. De um lado, a corrida frenética pelos próprios interesses num mundo altamente competitivo; de outro, exemplos de total e sincero devotamento a uma causa comum.

Uma das tensões mais profundas no coração da nossa cultura encontra-se no desenvolvimento das ciências empíricas, das tecnologias, dos mass media e da informática, que constitui fator positivo, mas com repercussões negativas, posto que liberta a pessoa de algumas servidões, mas a enreda em outras, de maior profundidade: o poderio técnico, tornando-se ilimitado, nem por isso oferece o “suplemento de alma”, a que já se referia Bergson (1859-1941). O avanço tecnológico não tem levado em conta o homem, com as suas necessidades pessoais, sociais e culturais; na verdade, o tem condenado a mero autômato, apenas observador do que fazem as máquinas. Reduziu-lhe o esforço físico, mas aumentou a sua ansiedade, com sérios prejuízos à sua capacidade de sobrevivência e à dos que se encontram sob sua dependência. Em outras palavras, esqueceu-se do indivíduo como pessoa, por isso, o produtivismo não encontrou solução para outros problemas seus, certamente mais importantes.

Convenhamos que, em meio a uma crise institucional sem precedentes, de natureza ético-moral, mais do que de caráter político-econômico, todos os caminhos de solução têm-se revelado ineficazes. Verdadeiramente, sente-se que o prático e o materialismo jamais seriam uma melhor alternativa para os rumos da humanidade. É então que desponta e vai-se impondo o que se pode chamar de uma nova necessidade (urgência) do sublime. O grotesco inflacionado no Brasil impõe uma rotina de brutalismo diário que vem depredando a cidadania e minando sua pluralidade democrática. Endurecemos tanto que perdemos o valor da ternura. Diante do trágico, o que nos resta? Aprender com a sutileza de Mateus Aleluia, na canção Amor cinza (2010):

“Na linha do horizonte tem um fundo cinza/Pra lá dessa linha eu me lanço, e vou/Não aceito quando dizem que o fim é cinza/Se eu vejo cinza como um início em cor/Quando tudo finda, dizem, virou cinza/Equívoco, pois cinza cura, poesia eu sou/O traje cinza lembra fidalguia/Quarta-feira cinza é dia de louvor/Vamos celebrar, o amor há de renascer das cinzas/Vamos festejar o cinza com amor/Gota de orvalho prateada é cinza/Massa encefálica é cinza, amor/A purificação também se faz com cinza/Fênix renasceu das cinzas com honor/Só quero dengo quando o dia é cinza/Ler poesia e cantar ao sol/Dedilho a viola e sonho colorido/E vejo no amante que o cinza desnudou/Vamos celebrar, o amor há de renascer das cinzas/Vamos festejar o cinza com amor”.

* Professor das Faculdades Ascensão e JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB 

Marcos Fabrício Lopes da Silva*