Câncer e biomateriais: novas rotas

Na música, como na literatura

Sob inspiração de teorias da tradução, tese propõe transcrição musical que respeite as relações idiomáticas do instrumento de origem

Em épocas diferentes, autores como Walter Benjamin, ­Antoine Berman e Paul Ricoeur publicaram textos importantes sobre a teoria da tradução. Eles defenderam algo como uma essência ética que deve tentar respeitar as relações entre forma e sentido estabelecidas no texto de origem.

Em tese defendida em agosto deste ano, na Escola de Música, Victor Melo Vale propõe que um raciocínio análogo se aplique à transcrição musical. Segundo ele, a transcrição sempre foi pensada sob o ponto de vista do instrumento de destino. “Em uma transposição para violão, a pergunta tem sido: como o violão melhor reconhece ou mais se adapta a essa obra? Em meu trabalho, defendo que a atividade transcricional deve respeitar as relações idiomático-discursivas em potência na obra a ser transcrita”, afirma Victor, que é professor da Universidade Federal de Ouro Preto.

Violonista erudito, Victor Vale analisou obras de três compositores do período barroco e suas respectivas transcrições para violão solo. Nas três sonatas e três partitas para violino solo de Johann Sebastian Bach (1685-1750), ele concentra seu estudo nas diferentes formas de produção sonora nos dois instrumentos. De acordo com Victor, enquanto no violino uma passagem escalar em legato é geralmente executada por um movimento de arcada unidirecional, o que propicia fluidez melódica, a técnica violonística tradicional prevê articulação nota a nota, que soa muito menos fluida. “Nesse caso, proponho explorar no violão, sobretudo, o recurso dos ligados de mão esquerda com o mínimo possível de ataques de mão direita. Esse procedimento elimina grande parte dos ruídos de ataque e aproxima o violão das possibilidades do texto de origem”, explica o pesquisador.

Em três sonatas para cravo do italiano Domenico Scarlatti (1685-1757), o objetivo de Victor Vale é que o violão possa receber ao máximo os “expressivos recursos tessiturais e texturais” dos instrumentos de teclado. “Aqui, procuro manter todo o tecido polifônico presente no texto original. Uso também o polegar da mão esquerda para segurar as cordas no braço do instrumento: com esse dedo a mais, a execução ganha mais alternativas”, revela o instrumentista, que fez toda a sua formação acadêmica na UFMG.

Victor Melo Vale: análise de obras de compositores barrocos e suas transcrições para o violão solo
Victor Melo Vale: análise de obras de compositores barrocos e suas transcrições para o violão solo Nathalia Torres / Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana

‘Scordatura’
O outro compositor tratado por Victor Vale em sua tese é o alemão Sylvius Leopold Weiss (1687-1750). No seu Capriccio em ré maior (peça mais livre, como uma fantasia ou um prelúdio), ­escrita para alaúde barroco, o pesquisador propõe reafinar o violão. Ele ­explica que o alaúde barroco tem 13 ordens, que são pares de cordas, o que dá a esse instrumento extensão muito maior que a do violão.

“Proponho o processo da scordatura, no qual se altera a afinação original do violão para aumentar as possibilidades de executar as estruturas musicais originais. As novas combinações dos dedos no braço do instrumento tornam mais fáceis as mudanças de acordes. Algumas notas, que na afinação original são quase inexecutáveis, podem agora ser executadas em cordas soltas”, diz Victor Vale, que é influenciado também pelo Movimento de Interpretação Historicamente Informada, que prega princípios mais éticos e fidedignos para a interpretação da música barroca. 

De acordo com Victor Vale, a reflexão acerca de conceitos como originalidade, idiomatismo, fruição e expressão revigora o debate sobre a atividade de transcrição. Ele salienta que, enquanto o pensamento sobre a tradução ganha maior preocupação de cunho ético, poético e reflexivo relacionada ao texto e à cultura de origem, os estudos sobre a transcrição musical desenvolvem-se de forma mais difusa. “A dicotomia traduttore/tradittore (tradutor/traidor) ainda se perpetua na cultura musical e alimenta a visão da transcrição como obra menor. A tentativa de incorporar ao violão as ‘estranhezas’ idiomáticas e o respeito ao discurso musical em potência no texto de origem oferecem novas possibilidades ao repertório de recursos e ferramentas técnico-expressivas desse instrumento”, conclui.

TeseA tradutibilidade do sentido: o processo de transcrição musical
Autor: Victor Melo Vale
Orientador:  Flavio Terrigno Barbeitas
Defesa em agosto de 2018, no Programa de Pós-graduação em Música

Itamar Rigueira Jr.