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Quadrinhos e capital social

Tese da Sociologia mostra que rede de contratos contribui para o sucesso de um quadrinista, mas discurso dos artistas valoriza meritocracia

Em 2011, o primeiro projeto relacionado à produção de quadrinhos obteve os recursos necessários por meio da plataforma on-line Catarse, de financiamento coletivo (crowdfunding). Um estudo da composição das redes que envolvem produtores e apoiadores, com base em softwares específicos, mostra que é muito usual encontrar pessoas que apoiaram projetos diversos. Análise revela que cinco candidatos bem-sucedidos, especialmente, tiveram quantidade significativa de apoiadores em comum.

“Esses cinco projetos souberam operar corretamente seus contatos pessoais. É grande o peso do capital social na taxa de sucesso dos iniciantes no universo dos quadrinhos”, afirma André Pereira, que defendeu tese recentemente, no Programa de Pós-graduação em Sociologia. Ele enfatiza que o crowdfunding “não apenas faz uso do capital social, mas exponencializa a força desse elemento e torna explícita sua importância”. A análise considerou os projetos que obtiveram sucesso no período de 2011 a 2014. 

Mas se a rede de contatos é tão importante, por que os produtores minimizam esse fator, em favor de aspectos como a qualidade e o esforço pessoal, como também descobriu o pesquisador? Segundo ele, esse discurso, que à primeira aproximação do entrevistador desdenha a relevância do capital social, “é sintoma da lógica liberal, que precisa valorizar a meritocracia”.

Páginas de Achados e perdidos, primeiro álbum de quadrinhos publicado por crowdfunding
'Achados e perdidos' foi o primeiro álbum de quadrinhos publicado por crowdfunding
Reprodução

André Pereira descobriu que os quadrinistas conhecem bem o funcionamento do mercado e lançam mão de estratégias diversas para maximizar suas possibilidades de obter os recursos necessários à viabilização de seus projetos. “O crowdfunding ensina que os artistas precisam ser empresários de si mesmos, dominando marketing, design, logística”, diz o sociólogo. “Além disso, muitas vezes, eles optam por projetos conjuntos, como forma de somar os contatos e, por consequência, os apoios. E podem até convidar um artista consagrado para assinar uma página e conferir mais credibilidade ao projeto.”

Novos artistas e editoras
André Pereira recorreu a teóricos como Pierre Bourdieu, que trata de desigualdade e lógica meritocrática nos campos de produção, e Michel Foucault, que, como Bourdieu, estudou as relações entre mercado, poder e subjetividade no contexto do neoliberalismo contemporâneo. Como escreve André Pereira no capítulo de conclusão de seu trabalho, “o comportamento dos artistas corresponde ao de ‘empreendedores de si mesmos’, que enxergam no mercado o ‘lugar de veridicção’, o teste experimental para o investimento que fizeram em seu capital humano”. O pesquisador utilizou análise de dados e de rede, análise de conteúdo (sempre auxiliado por softwares) e etnografia.

A entrada do crowdfunding no campo dos quadrinhos, segundo André Pereira, levou ao surgimento de um exército de novos artistas e de pequenas e médias editoras. “Os quadrinistas mais conhecidos, que vinham sendo publicados pelas grandes editoras, viram seu espaço ameaçado, porque o financiamento coletivo tornou-se uma alternativa forte”, diz André.

O autor destaca que o financiamento coletivo incorpora ao meio dos quadrinhos o capital social externo, contatos que não fazem parte do campo. “Ele não rompe as regras do campo, mas as transforma, traz um novo elemento a ser valorizado como eficaz no sucesso do artista”, afirma o pesquisador. A transformação, segundo ele, não tem a ver com resistência consciente e articulada dos agentes para modificar uma dinâmica que consideravam injusta ou excludente, mas resulta de “novas possibilidades associadas a uma nova tecnologia, em conjunto com subjetividades em contexto de governamentalidade neoliberal”. 

O orientador da pesquisa, professor Yurij Castelfranchi, salienta que os resultados mostram que o crowdfunding incorpora, ao mesmo tempo, dois aspectos aparentemente contraditórios: “o individualismo, já que o artista assume a responsabilidade pelo próprio futuro, investindo em capital humano, e o coletivismo, representado pela solidariedade entre os artistas emergentes”.

Tese: "Uma mão lava a outra": crowdfunding e novas formas de publicar quadrinhos no Brasil
Autor: André Pereira
Orientador: Yurij Castelfranchi
Defesa: dezembro de 2017, no Programa de Pós-graduação em Sociologia

Itamar Rigueira Jr.