A dignidade começa pelo nome
Apenas em janeiro deste ano, mais de 50 pessoas trans ou travestis foram brutalmente assassinadas em todo o Brasil. Esse é um índice que cresce nos últimos anos. Estima-se que o Brasil seja o país onde mais se matam pessoas trans e travestis. O uso do advérbio “brutalmente” na primeira frase é importante para analisarmos alguns aspectos que envolvem os atos violentos contra essa parcela da população. A violência contra esses corpos objetiva mais do que eliminá-los; pretende transformá-los em imagens, em formas exemplares daquilo que não deve existir.
Essa violência silencia o corpo. Entretanto, a brutalidade dos crimes confere grande poder de fala para as imagens quando circulam nos meios de comunicação e informação. O ato violento é um ato de julgamento. O corpo ferido retratado nas imagens midiáticas representa uma “honra” lavada com sangue. Um ser extirpado do convívio social, um corpo sacrificado e exposto para servir de lição aos seguidores do caminho semelhante ao da pessoa morta. É preciso lembrar que o julgamento diário não se faz apenas na violência extrema contra o corpo. Ele opera com maestria na subtração de direitos e acessos, na construção e operação de uma maquinaria simbólica que classifica e marginaliza essa parcela da população, visando à manutenção constante dos processos responsáveis por sua invisibilidade com base em lógicas de preterição moral e social.
Desarticular as estratégias de invisibilidade é uma das maneiras possíveis para diminuir a violência contra as pessoas trans e travestis
Desarticular as estratégias de invisibilidade é uma das maneiras possíveis para diminuir a violência contra as pessoas trans e travestis. Investir na visibilidade não é apenas expor os corpos, mas pensar nos modos pelos quais serão vistos e percebidos nos espaços sociais. Os ambientes educacionais são fundamentais para isso. É dever de qualquer escola e universidade garantir às pessoas trans e travestis o direito ao acesso e uso de seus múltiplos ambientes, sempre livres de preconceitos. Em uma perspectiva ampla, moradia, saúde, segurança e educação são alguns dos direitos humanos. Porém, a Declaração Universal dos Direitos Humanos amplia essas garantias e as afirma, entre outras formas, pela promoção da igualdade entre homens e mulheres, da dignidade, do valor das pessoas, do desenvolvimento social. Quer dizer: é preciso criar o acesso aos direitos básicos e, assim, propiciar melhoria da qualidade de vida e aumento da liberdade.
Muitas e muitos integrantes da população com identidade diversa do gênero/sexo determinados no nascimento não têm acesso a educação, saúde ou moradia digna. Na escola e na universidade, essas pessoas, em sua maioria, são vistas como diferentes e indignas de apreço. Em vez de encontrarem condições de aprendizagem semelhantes àquelas destinadas aos seus colegas, elas deparam com quadros de humilhações constantes; suas vidas estudantis são transformadas em uma resenha de intolerâncias. Uma das fontes dessa humilhação é a insistência no uso do nome civil para designar essas e esses estudantes. Novamente, encontramos nessa ação o gesto punitivo, o julgamento que sentencia a pessoa a permanecer na clausura do gênero/sexo determinado no nascimento, impedindo que ela ou ele se apresente socialmente com o nome correspondente ao gênero com o qual se identifica. Nominar não é algo simples. O nome determina, individualiza e localiza a pessoa na sociedade. O nome também determina o gênero. É por meio dele que somos conhecidos no grupo social. Nesse sentido, é fundamental ressaltar que nome social não é apelido. Um nome social designa a identidade de gênero de quem o escolheu, delimita as formas de apresentação e relacionamento social. O reconhecimento do nome social afirma, para pessoas trans e travestis, a dignidade como pessoa.
O uso do nome social é apenas o princípio dessa garantia. Diante de uma dívida social histórica, é urgente a elaboração de modos de acolhimento para favorecer a permanência dessas pessoas no ambiente escolar e universitário. O estabelecimento de ações e políticas educacionais que combatam o preconceito e a discriminação contra pessoas trans e travestis é, também, função da universidade. Cotidianamente, essa parcela da população é empurrada para as margens, para zonas sombrias, e privada da livre circulação sob a luz do dia, pelo não reconhecimento de sua identidade e pelo desrespeito da sua expressão de gênero. Ampliar a presença desses corpos – como estudantes, técnicas e técnicos ou professoras e professores – no ambiente universitário é uma das maneiras possíveis de colaborar na redução da vulnerabilidade a que estão submetidas pessoas trans e travestis.
As universidades formam profissionais que atuarão nas mais diversas áreas do conhecimento. Identidade de gênero e direitos humanos são temas que devem estar presentes no horizonte acadêmico como forma de criar ações afirmativas com a finalidade de diminuir a desigualdade de direitos e a violência. É preciso desfazer os locais de julgamento que classificam, rotulam e discriminam as pessoas,levando-se em conta padrões de classe, de sexo biológico, de identidade de gênero, de orientação sexual, de crença ou de etnia. É necessário reafirmar, dia após dia, que essa parcela da população detém o direito a uma educação pública, gratuita e de qualidade. A universidade deve ser um espaço de todos e para todos.
*Professor do Departamento de Comunicação Social da Fafich e presidente da comissão de acompanhamento da implantação do nome social na UFMG.