O SUS e a inovação

Além do horizonte

No passado, a Serra das Congonhas era marco paisagístico que emoldurava a antiga localidade batizada de Curral Del Rey, lugar de pastagens verdejantes e inúmeros cursos d’água, onde se fixavam temporariamente as comitivas que, vindas dos sertões do São Francisco e da Bahia, levavam as boiadas aos centros mineradores. Eram espaços e tempos distintos que a história local registrou. Havia paisagens para minerar e paisagens para plantar. A Rua Padre Pedro Pinto, em Venda Nova, na época Rua Direita, fazia parte desses caminhos. No registro da Contagem das Abóboras, contabilizava-se o número de passantes para pagamento dos tributos reais. Transeuntes, bois, escravos, mercadorias eram taxados, pois não havia outra forma de arrecadação.

O passado colonial português, imortalizado nas estradas, ruas e travessas, fazia-se presente, evocando elementos que precisavam ser esquecidos. A República trouxe novos sonhos que se materializaram em mudanças e novos olhares. Essa região do “belo horizonte” viria a abrigar, no fim do século 19, a nova capital das Minas Gerais, posição ocupada, até então, por Ouro Preto.

 Hoje, Belo Horizonte é uma metrópole com mais de dois milhões de habitantes e um grande aglomerado resultante da conurbação de municípios que a circundam. Do passado restou a Serra das Congonhas, que com o tempo passou a ser chamada de Serra do Curral Del Rey e, posteriormente, Serra do Curral, marco simbólico na paisagem da capital mineira. Essa serra encantou Carlos Drummond de Andrade, que se mudara para cá, indignado com o sumiço de um pico engolido pela mineração, em sua terra natal, Itabira. No entanto, a história se repetiria por aqui, causando-lhe igual indignação. Há vários registros literários dessa revolta do poeta, antes que ele se fixasse no Rio de Janeiro.

Assim, aquele alinhamento serrano, tombado pelo Iphan em 1960 e destinado a se tornar parque estadual de acordo com a lei 7041, de 19/07/1977, transformou-se, nas três décadas seguintes, numa enorme cava, com áreas laterais degradadas. A mineração no Complexo Águas Claras desestabilizou o talude da serra, atualmente escorado por amarras tecnicamente adequadas. Um grande lago de 200 metros de profundidade emoldura o cenário de desolação e destruição. Era o começo de uma história sem fim. No Taquaril, uma grande lavra se formou, descaracterizando severamente a paisagem local. No Acaba Mundo, Olhos d’Água e Solar do Barreiro, a mineração efetivaria recortes significativos, contabilizando lucros imediatos e socializando impactos diversos. E a história, outrora conhecida de todos, se repetia. Lucros para poucos e passivo ambiental para todos. 

As leis se mostraram irreveláveis e adaptáveis à ideologia míope do “progresso”. Em 1995, a população elegeu a serra como símbolo da cidade, e várias unidades de conservação se efetivaram para preservação de um mosaico de biodiversidade e geodiversidade. Entretanto, as pretéritas feridas abertas pelas mineradoras continuam sangrando. A serra caminha silenciosamente para o caos. Apesar da legislação, a pressão urbana também exerce força gradativa sobre o símbolo dos belo-horizontinos, fatiando-lhe pedaços significativos. Resta agora que o grito de socorro da serra ecoe nos ouvidos daqueles que sempre a contemplaram além do horizonte. Aos que não se imaginam sem essa montanha ao alcance dos olhos, e também da alma, restam o grito e a mobilização.

Sim, nossa alma está lá, encantada entre vales, regatos e matas, e nos anuncia tristezas futuras. E é justamente para além do (belo) horizonte, escondida e desconfiada como um bom mineiro, que a serra receberá seu golpe final. A região do Pico Belo Horizonte encontra-se seriamente ameaçada por um grande Complexo Minerário formado pela junção das empresas Cowan, Empabra e Mineradora Taquaril. O irrevelável empreendimento de grandes proporções afetará diretamente Nova Lima, Raposos e Sabará. Uma grande área de renascentes nativos inseridos na transição entre cerrado e mata atlântica será removida. Áreas de canga ferruginosa, com alto endemismo de espécies, também serão impactadas. Em Belo Horizonte, os impactos chegarão à região central e às zonas leste e sul. Seriam fraturas a predestinarem um triste horizonte? 

É preciso rever esse absurdo, que se encontra em processo avançado de licenciamento. A serra não sustenta mais nenhum abuso. É preciso mobilizar a sociedade para as projeções metropolitanas desse empreendimento insano. A área potencializa cenários únicos, por meio da conservação de suas paisagens, potencializando ecoturismo e geoturismo. Sua importância vai além dos aspectos ambientais, pois reconfigura-se no imaginário dos moradores de Belo Horizonte, tornando-se inegável patrimônio cultural. 

Se, “além do horizonte existe um lugar bonito e tranquilo”, é nele que morava a alma dos primeiros habitantes desses vales que hoje formam a sexta maior urbe do país. É nele que se refugiou a alma dos moradores de um antigo arraial condenado à demolição para construção de outra cidade. É nele que mora a alma de mais de dois milhões de habitantes. E essa alma anuncia que não partirá, jamais. Ela se fortalecerá com o grito coletivo dos que não se deixam vencer pela égide minerária. Ela vislumbra novos tempos para essas paisagens únicas – tempos em que sua natureza, recuperada e efetivamente preservada, possa encantar as futuras gerações. Não à mineração na serra! Esse continua sendo o grito de todos aqueles que anseiam por novos tempos. 


Vagner Luciano de Andrade -  Agente educador e mobilizador da Rede Ação Ambiental, com formação em Ecologia, Geografia, Magistério, Patrimônio e Turismo