Relógio desregulado

Vida em descompasso

Pesquisas de grupo do ICB dimensionam os efeitos que alterações no ritmo circadiano provocam sobre a fisiologia humana

Maristela Poletini: uso excessivo das mídias digitais à noite reduz a produção de melatonina
Maristela Poletini: uso excessivo das mídias digitais à noite reduz a produção de melatonina Foca Lisboa/UFMG

Alterações temporárias provocadas no ritmo biológico de nadadores brasileiros para melhorar seu desempenho nesta olimpíada em competições programadas para o período noturno revelam aspecto positivo de uma realidade preocupante: o rompimento da sincronia entre o organismo humano e o tempo geofísico da Terra. “A ciência já tem dados para concluir que desafios impostos à nossa fisiologia, como a exposição excessiva à luz e a outros estímulos que nos mantêm alertas, são prejudiciais à saúde”, afirma a professora Maristela de Oliveira Poletini, do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biológicas (ICB).

 “A ciência já tem dados para concluir que desafios impostos à nossa fisiologia, como a exposição excessiva à luz e a outros estímulos que nos mantêm alertas, são prejudiciais à saúde”

As pesquisas abordam o ritmo circadiano, período de aproximadamente 24 horas no qual se completam as atividades do ciclo biológico. De acordo com a professora, a interrupção no ritmo biológico é considerada, pela Agência Internacional para Pesquisas sobre Câncer (Iarc), como carcinogênica, isto é, com potencial de estimular o aparecimento da doença. Em artigo para a revista Molecular and Cellular Biochemistry (MCBI), Maristela Poletini demonstra que, com essa alteração, os chamados genes do relógio, presentes em todas as células do organismo, têm seu funcionamento comprometido em células pigmentares cancerígenas do melanoma (câncer de pele). A literatura também revela que o rompimento do sistema circadiano pode causar obesidade, síndrome metabólica, doenças cardiovasculares, transtornos de humor e déficit cognitivo.

Uma das pesquisas de doutorado orientadas por Maristela Poletini investiga quais são e como agem as pistas enviadas pelo sistema nervoso central a órgãos como fígado, pâncreas e adrenal, em resposta a sinais externos como luz e temperatura, para sinalizar os tempos corretos de repouso e de atividade. Outra tese em andamento sob sua orientação mimetiza experimentalmente em ratas a falência ovariana característica da menopausa, com o objetivo de identificar como o declínio dos hormônios femininos nesse período está relacionado com a desincronização do sistema circadiano, e com o possível aparecimento dos sintomas típicos da menopausa. 

Dados epidemiológicos mostram que paralelamente à redução desses hormônios aparecem distúrbios do sono e de humor, deposição de gordura abdominal, ganho de peso e hot flashes (calores). Dissertação de mestrado de uma aluna de sua equipe tem observado alterações hormonais em roedores isolados, uma vez que a interação social é uma das pistas utilizadas pelo relógio biológico para sincronizar o organismo ao tempo geofísico.

Sistema circadiano

O relógio biológico endógeno é composto de um conjunto de genes codificado no DNA e, portanto, presente em todas as células dos organismos. Esse sistema circadiano controla a sincronização com o meio, a partir da rotina e de pistas como luz, alimentos, interação social, temperatura e atividade física, e ajusta o sistema fisiológico, para que ele se antecipe às necessidades externas, a exemplo do aumento de salivação para a fome e de mudanças da temperatura corporal para o sono e a vigília.

Localizado no núcleo supraquiasmático do hipotálamo, no sistema nervoso central, o principal relógio biológico é o maestro dos múltiplos relógios periféricos. “O hipotálamo processa as pistas ambientais e as envia aos relógios periféricos, que regulam atividades como secreção hormonal e metabolismo energético”, explica Maristela Poletini. Segundo ela, a faixa de comprimento de luz emitida por aparelhos eletrônicos – de TVs a dispositivos móveis – que vai de 470 a 490 nanômetros ativa o receptor fótico das células da retina e gera sinal elétrico que informa ao organismo que ele deve se manter ativo. Tal informação se traduz em mudanças no padrão de liberação hormonal e de temperatura e inibição da produção do hormônio melatonina, cuja ausência gera transtornos como síndrome metabólica, caracterizada por resistência à insulina, deposição de gordura abdominal, alta de colesterol e de triglicérides. O pico de produção de melatonina, pela glândula pineal, ocorre na ausência de luz.

Dados epidemiológicos revelam que o brasileiro passa mais de nove horas por dia na internet, expondo-se à luz. “Nossa melatonina está se reduzindo com o uso excessivo das mídias digitais à noite”, alerta a pesquisadora. Maristela Poletini explica que o trabalho em turnos ou noturno causa dessincronia com o tempo geofísico e provoca distúrbios. Pesquisas com pessoas que alternam os dias em que trabalham à noite mostram altos índices de diabetes melitus tipo 2, obesidade, transtornos de sono e de humor. “É pior para a saúde trabalhar em turnos alternados do que só à noite, porque o organismo não tem tempo de se adaptar. 

Usamos a metáfora do elástico para ilustrar essa plasticidade, ou seja, esse poder de adaptação do sistema circadiano”, enfatiza a professora. Há também estudos que mostram efeitos da luz e do relógio biológico sobre a memória, o aprendizado e os transtornos de humor, e outros que abordam os malefícios da alimentação noturna, quando o organismo deveria estar em repouso.

Pistas temporais

Com o intuito de entender como as pistas externas são interpretadas pelo meio endógeno, pesquisa de doutorado orientada por Maristela Poletini investiga como a temperatura interna circadiana é percebida pelos órgãos periféricos. “Escolhemos observar fígado, pâncreas e adrenal porque eles coordenam o nosso metabolismo energético –  glicemia (concentração de glicose), lipídios (gorduras) e proteínas”, justifica a professora. Segundo ela, a tese focaliza uma proteína de membrana da célula, o canal TRPV1, que parece estar envolvido na sinalização de temperatura. “As pistas externas – e a luz é uma delas – precisam passar pelo sistema nervoso central, que gera informação para os múltiplos relógios periféricos. Queremos saber quais são esses sinais e como chegam para os relógios periféricos”, diz a orientadora.

As pesquisas são realizadas por integrantes da equipe do Laboratório de Endocrinologia e Metabolismo do Departamento de Fisiologia e Biofísica da UFMG, em colaboração com o Laboratório da Pigmentação do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e das fundações de amparo à Pesquisa dos estados de Minas Gerais (Fapemig) e de São Paulo (Fapesp). 

No fim do mês passado, a professora e sua equipe organizaram o curso de extensão Fisiologia Avançada – o bem e o mal das inovações tecnológicas e da tecnologia na saúde humana, com o objetivo de conscientizar a população sobre os efeitos da dessincronização do relógio biológico sobre a saúde. A primeira edição foi realizada no campus Pampulha, e duas outras já estão programadas: nos dias 16 e 17 de dezembro, na Universidade Federal de São João del-Rei, e em fevereiro de 2017, novamente na UFMG. 

Ana Rita Araújo