Senhora das águas

Cientistas fantasmas

Nas semanas que se seguiram ao bem-sucedido movimento dos artistas para “receber de volta” o Ministério da Cultura no governo do presidente interino Michel Temer, cientistas de várias partes do Brasil começaram a se articular para conseguir o mesmo feito com o importante Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

Ocupando ruas e parques ou aparecendo em notas em jornais e noticiários, os cientistas começaram a ser vistos pela população, que conhecia de “ouvir falar”. Eles surgem para a sociedade num momento em que necessitam de apoio para lograr o mesmo sucesso dos artistas. Precisam deixar claro que seu trabalho é fundamental para o bem-estar de todos. Eles aparecem para lembrar que grandes avanços no cuidado da saúde são frutos do trabalho árduo de cientistas, que tecnologias como o celular e a imagem de ultrassom dependem do desenvolvimento da ciência. 

Em uma sala de TV, na qual uma família comum brasileira estivesse reunida para assistir ao noticiário, após um dia de protesto, poderiam surgir várias perguntas: “Esses aí são cientistas? Não parecem”. “Mas são todos brasileiros mesmo?” “Há mulheres nesse grupo?” Aliás, muitas. “São cientistas também?” “Mas eles não são apenas professores universitários?”

Para muitos, essas perguntas podem não fazer sentido, mas se consideramos dados de enquetes sobre a percepção pública da ciência no Brasil, em que apenas 12% dos entrevistados, em média, disseram conhecer um nome de cientista brasileiro, esses questionamentos não surpreendem. Curioso é que, entre os cientistas mais mencionados na pesquisa, estão Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, o que denota desconhecimento sobre cientistas contemporâneos.

Mas quem é o cientista brasileiro contemporâneo? 

De uma busca na Plataforma Lattes, o maior banco de dados de currículos de profissionais da Ciência e Tecnologia (C&T) brasileira, apreende-se que a maioria dos 120 mil doutores/doutoras cadastrados executam seu trabalho de cientista nas universidades públicas. Nelas, ingressam na carreira de professor, dividindo seu tempo entre fazer pesquisa, ensinar e orientar estudantes de graduação e pós-graduação, ocupar cargos administrativos e dialogar com a sociedade por meio da extensão. E, quando perguntados sobre sua profissão, certa e orgulhosamente, dirão: SOU PROFESSOR! 

Seriam eles os mesmos que também responderiam SOU CIENTISTA? Aparentemente, não!

Em pesquisa realizada com 20 cientistas do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, apresentada em congresso na Turquia (disponível em http://bit.ly/1SL7vJo), detectamos que apenas um deles responderia a essa questão como cientista. As maneiras de autodenominação profissional em situações formais e informais variam, sendo as mais comuns professor universitário e professor/pesquisador. O desenrolar desse estudo nos levou a pesquisar, por meio de grupos focais com outros cientistas, os motivos para essas escolhas. Entre as várias ideias surgidas, as principais foram: 1) professor universitário é o cargo para o qual fizeram o concurso público; 2) a profissão de “cientista” não é regulamentada e tampouco é restrita a profissionais de uma área; 3) não há, em princípio, consequências profissionais ou sociais da opção por não se autodenominar cientista. 

No entanto, alguns reconheceram que essa atitude pode impactar a maneira como a sociedade vê  – ou não vê – a ciência e o cientista. Chegaram a detectar falta de visibilidade dos cientistas e da ciência, que pode ser decorrente do pouco investimento em C&T e do treinamento falho de profissionais e jornalistas de divulgação científica. 

Recentemente, o cientista-professor-pesquisador Nélio Bizzo, da Universidade de São Paulo, levou à Academia Brasileira de Ciências (disponível em http://bit.ly/1rqGFti) alguns dados de seu grupo que indicam que o jovem brasileiro gosta de ciência, mas não considera a carreira de cientista uma opção para sua vida. Sem conseguir entender a lógica por trás desses achados, Bizzo sugere algumas explicações para esse desinteresse. A esse respeito, acredito que não conhecer como a ciência é feita e os atores envolvidos são fatores que contribuem para essa falta de motivação. Os cientistas citados na mídia são, em sua ampla maioria, estrangeiros e possivelmente carregam uma aura de inatingibilidade (sem falar no ainda vivo estereótipo de gênio/louco associado ao cientista). Estaria no imaginário desses jovens a figura do homem e da mulher comuns, que têm a ciência como seu ganha-pão? A fama mundial desses cientistas internacionais midiáticos é garantida não apenas pela qualidade de sua publicação, mas também pela boa vontade deles em divulgar seus dados de pesquisa, pelos press releases, numerosos e bem feitos por suas universidades, e pelos blogues dos periódicos internacionais, que acabam pautando os “espaços” de ciência dos veículos brasileiros, já que cadernos de ciência praticamente sumiram até dos jornais de grande circulação.

Não há dúvidas de que nós cientistas/professores/pesquisadores precisamos do aval da sociedade para reivindicar nossa fatia do bolo do orçamento do governo para o desenvolvimento da ciência. Fica notória, em momentos como o atual, a necessidade de se estampar a identidade do cientista de forma muito clara, visível e compreensível pela sociedade. Devemos ocupar nosso lugar de cientista, deixando de ser fantasmas ou seres misteriosos. A participação consistente em eventos e projetos de divulgação científica, sem dúvida, nos ajuda a mostrar a cara. E quem sabe ajudaria, também, se nos acostumássemos a dizer a um cidadão comum: Muito prazer! Sou cientista! E você?

Adlane Vilas-Boas