Gênero e Drogas
Análise conclui que viés patriarcal e opressor determina percepção social do consumo de drogas por mulheres
Se a saúde do homem tende a ser observada em uma perspectiva independente, as discussões sobre a saúde da mulher sempre se deram atravessadas por sua sexualidade e sua capacidade reprodutiva. A psicóloga Isabela Saraiva de Queiroz mapeou essa manifestação do patriarcalismo e considerou suas consequências para a saúde das mulheres que usam drogas na tese Norma de gênero e uso de drogas: normalização e diferença na experiência de mulheres, defendida no Programa de Pós-graduação em Psicologia. Por sua pesquisa, Isabela recebeu o Grande Prêmio UFMG de Teses 2016 no grupo Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas e Linguística, Letras e Artes.
“Isabela evidencia o quanto os trabalhos da medicina, ao desconsiderarem as questões de gênero na reflexão sobre o tratamento de mulheres usuárias, acabam por reforçar o preconceito sexista em suas análises”, explica o professor Marco Aurélio Máximo Prado, que orientou o trabalho. Para ele, a tese se destaca por mostrar “como o uso da Psicologia Social pode ser fundamental para uma análise e uma escuta das mulheres usuárias, para melhor entender as formas de resistência e empoderamento dessas pessoas”.
Em seu trabalho, Isabela Saraiva optou pela etnografia multissituada – que tem entre seus expoentes autores como George Marcus e Michael Fischer –, em lugar da etnografia clássica, buscando assim examinar a circulação de significados e identidades culturais em diferentes espaços. Após ouvir usuárias de drogas inseridas em um serviço público de saúde mental, a pesquisadora mergulhou no cotidiano de três delas ao longo de um ano, seguindo-as por onde circulavam. “O mérito da autora foi ter saído das instituições de saúde e encarado o cotidiano das mulheres usuárias nas ruas, nas vilas e em suas casas, tecendo assim uma relação muito cuidadosa para apreender os inúmeros sentidos do uso de drogas”, afirma o orientador.
“Em nossa sociedade, a mulher comum já não tem voz, imagina, então, a mulher usuária de drogas?”, provoca Isabela. “Nesse sentido, a minha proposta foi a de entender essas mulheres como enunciadoras legítimas da sua experiência”. Ao seguir seus passos, a pesquisadora pôde analisar a situação de suas pesquisadas de forma aprofundada, considerando variáveis como família, religião, idade, etnia, contexto social, estado civil, ambiente de trabalho, condição sociodemográfica, gênero, orientação sexual e saúde mental.
Além desse trabalho de campo, Isabela mobilizou os postulados filosóficos de Foucault e Judith Butler e realizou exaustiva revisão bibliográfica dos últimos 30 anos de pesquisas sobre o tema, consultando quase 150 trabalhos, entre teses, artigos e dissertações. Ao longo da empreitada, foi percebendo que os estudos sobre o uso de drogas por mulheres tendem a ser majoritariamente quantitativos, além de focados em perspectivas estritamente essencialistas, biologicistas, epidemiológicas, não considerando as dimensões socioculturais, históricas ou políticas que tocam o tema.
Essa investigação – somada ao trabalho de campo – possibilitou que a pesquisadora concluísse que o uso de drogas por mulheres tende a ser considerado por pesquisadores e pelas instâncias de saúde pública por um prisma sexista. Segundo a tese, a atenção em saúde oferecida a essas mulheres colabora para submetê-las a um já recorrente imaginário de fragilidade e para sedimentá-las em uma condição de subordinação.
“Os modos de intervenção são desiguais. A pretensa fragilidade feminina justifica estratégias de controle e vigilância sobre as mulheres e seus corpos, que os mantêm sob uma lógica de cuidado diferenciada, subordinada à sua potencial função reprodutora”, afirma a autora. Nesse sentido, a tese reitera que o corpo da mulher é um campo político em disputa – daí a importância do movimento feminista para a saúde da mulher. “Para muitas delas, usar droga é uma forma de sair da posição de subalternidade: posição de quem não vive, não faz, não tem liberdade para usar o próprio corpo”, defende Isabela Saraiva.