Falam casas, ruas e praças
Em livro, pesquisadoras da Arquitetura oferecem panorama dos principais métodos de análise da formação e transformação da paisagem urbana
Não é sempre que uma obra que tem a finalidade precípua de ser didática consegue, ainda que por vias tortas, contar histórias interessantes de caminhos de vida e de produção intelectual. Um geógrafo alemão radicado na Inglaterra e um arquiteto italiano, ambos perseguidos por regimes totalitários pré-Segunda Guerra, são personagens centrais do livro Fundamentos de morfologia urbana (editoraC/Arte), da professora Staël Alvarenga e da pesquisadora Manoela Netto, ambas vinculadas ao Laboratório da Paisagem da Escola de Arquitetura.
De forma inédita no Brasil, a obra esmiúça as ideias de M.R.G. Conzen e Saverio Muratori, que elaboraram as metodologias mais completas e aceitas para a compreensão de uma cidade. “A morfologia urbana oferece abordagem que junta forma, função e desenvolvimento do tecido urbano”, afirma Staël Alvarenga, que é doutora pela USP. O objetivo é entender o processo de formação e transformação de uma paisagem urbana, mirando as formas concretas e levando em conta fatores sociais, culturais e ambientais.
Conceitos e instrumentos descritos em texto publicado por Conzen, em 2004, foram aplicados e interpretados em Ouro Preto (MG), por pesquisadores do Laboratório da Paisagem. O método relaciona períodos históricos às inovações nas cidades.
“A escolha da antiga Vila Rica se deveu à abundância de mapas e dados cadastrais desde o século 18, que foram sobrepostos a bases digitais atualizadas, e à equivalência de dimensões com a cidade de Alnwick, na Inglaterra, estudada de forma consistente pelo geógrafo alemão”, comenta Manoela Netto, que cursou graduação e mestrado na Escola de Arquitetura. Ela acrescenta que foi possível perceber distorções – de proporção e localização, por exemplo – nos documentos antigos, o que exigiu ajustes com base em dados georreferenciados.
Sete períodos
A análise de Ouro Preto reproduzida no livro considera sete períodos morfológicos, que vão desde o tempo da descoberta do ouro (1698-1710), quando havia oito arraiais, até o pós-tombamento pela Unesco (de 1980 aos dias atuais). Nesse intervalo, Staël Alvarenga e Manoela Netto definiram as seguintes fases: Criação da Vila Rica (1711-1740), marcada por núcleos ocupados por portugueses e paulistas; Consolidação da Vila Rica (1741-1824), em que os dois povoados se unem; A cidade de Ouro Preto (1825-1896), época de investimentos em infraestrutura urbana de acordo com a ideologia imperialista; Estagnação econômica (1897-1937), após a mudança da capital para Belo Horizonte, fase marcada pela permanência das formas; Tombamento e expansão urbana, quando o então recém-criado Iphan declara a cidade patrimônio nacional. “Nessa etapa, florescem atividades econômicas e surge a Universidade Federal de Ouro Preto”, afirma Manoela Netto.
No último período, iniciado com a decisão da Unesco, o incremento do turismo coincide com o surgimento de ocupações espontâneas em encostas e outros fenômenos que afetam o caráter de patrimônio histórico da cidade. As pesquisadoras ressaltam que a clara percepção das transformações espaciais ao longo do tempo possibilita intervir de maneira mais consciente com determinados objetivos como o da preservação ambiental e cultural.
Rota matriz
O método de Saverio Muratori, divulgado em publicações de seus discípulos, uma vez que o professor se limitava a expor suas ideias em aulas e conferências, também foi aplicado em Ouro Preto. Os elementos-chave da metodologia são as casas (tipo básico), as ruas (séries tipológicas), os quarteirões (tecido urbano) e o território (organismo urbano).
“A formação da cidade é explicada sobre a noção de eixos que vão se unindo. O caminho-tronco ou rota matriz – que no caso de Ouro Preto é o trecho da Estrada Real – forma os quarteirões com uma rota paralela chamada conexão”, explica Manoela Netto. Ela lembra que Muratori era filósofo e privilegiava a preservação da história, um dos motivos pelos quais incomodava o regime fascista. O italiano, que lecionou na Universidade de Roma, investigou por quase duas décadas a evolução de Veneza e de Roma.
Se Conzen e Muratori divergem nos métodos, eles têm objetivos muito próximos, que se caracterizam, de acordo com as autoras de Fundamentos de morfologia urbana, pela relevância de se compreender a relação entre transformação e permanência. “A escola inglesa da morfologia urbana, fundada por Conzen, e a escola italiana, que se construiu sobre as ideias de Muratori, compõem exemplo típico da sincronicidade de necessidades criadas por um tempo de crise e que levam à elaboração de teorias convergentes na sua essência”, afirma Staël Alvarenga.