Velhice malnutrida

Museus hiperconectados

Como expor em um dos museus mais famosos do mundo sem autorização? Realidade aumentada! Oito artistas causaram alvoroço no MoMA de Nova York “interagindo” com a galeria de Pollock. Por meio de um aplicativo (não oficial) do museu, os visitantes visualizavam as intervenções virtuais, que surgiam na tela se superpondo à imagem das obras de arte capturadas pelas câmeras do celular.

Com o provocativo título de Hello, we’re from the internet, o coletivo MoMAR protestava, nessa intervenção de guerrilha, contra o elitismo na arte. Sem estabelecer crítica ao mérito da proposta, o episódio nos leva a constatar que a invasão do digital nos museus ocorrerá com o consentimento ou não da instituição. Museus virtuais, coleções on-line, acervos digitalizados, aplicativos de mediação, softwares de gestão e comunicação, interfaces e expositores interativos, jogos e artes eletrônicas... Somos uma sociedade hiperconectada, e a revolução digital nos museus é um simples reflexo dessa realidade. Esse contexto inexorável suscita temores, vantagens e desafios.

O virtual vai destituir a importância do real? Do mesmo modo como as técnicas de reprodução de imagem não foram capazes de diminuir nosso interesse pelo original, a virtualidade não destronará o desejo de materialidade que habita em nós. Assim como a fotografia de uma taça de vinho não embriaga o paladar, a internet apenas abrirá o nosso apetite pela cultura material. As antecipações e os conhecimentos proporcionados pelo virtual potencializam o real, despertam nossos sentidos para a experiência presencial, atuando como ponte rumo a essa vivência.

A conexão digital em museus resulta em grandes benefícios. O usuário, antes passivo, agora pode construir o seu caminho e deixar sua pegada, por meio de comentários em blogs e sites de museus, redes sociais ou recursos como legendas coletivas on-line. Os conteúdos, até então emoldurados pelas questões de espaço e design expográfico, são transmitidos de forma inovadora e ilimitada – em qualquer língua, adequados a quaisquer idades e níveis de conhecimento, por meio de qualquer mídia, acessível a pessoas com qualquer deficiência: basta o visitante informar ao aplicativo do museu as características do seu perfil pessoal para obter vídeos, legendas e textos adequados para si e até mesmo customizados por algoritmos.

A gamificação da vida, aplicada ao ambiente cultural, aumenta o engajamento do visitante e conquista em especial as novas gerações, que encaram o virtual com a mesma naturalidade com que nós outrora aprendemos a lidar com o carro ou com a televisão – tecnologias que já foram, um dia, igualmente ameaçadoras.

Não obstante os bônus, precisamos reconhecer os inúmeros desafios impostos pela hiperconexão museal. A minha geração, que teve uma infância analógica, uma adolescência digital e uma maturidade virtual, talvez seja a mais suscetível ao deslumbramento. Esse fascínio pode redundar em decisões temerárias e consequências para a função social e para a sustentabilidade dos nossos museus.

Incorporar tecnologias digitais ao cotidiano de uma exposição significa se preparar para uma mudança radical de paradigma das organizações, que impacta quase todos os aspectos e setores da instituição. Da gestão ao orçamento: tudo precisa ser constantemente revisitado em uma velocidade nada habitual até então. Não basta mais simplesmente acender a luz e abrir as portas. Um museu tecnológico implica considerável investimento de recursos e energia na criação, operação, manutenção e constante atualização dos conteúdos e equipamentos. Construir, ainda, um canal virtual de comunicação com o usuário significa gerir e mediar esse contato, exigindo a estruturação de setores dedicados e a contratação de pessoal especializado.

Indo além: o continente altera o conteúdo, ou seja, o frasco determina a forma do líquido. O texto de museu, com suas velhas roupagens impressas, não “caem assim tão bem” no suporte digital. Seria o caso de desenvolvermos um novo gênero? Expowriting ou exhiwriting, talvez: o texto digital dos museus virtuais, adequado aos contextos expositivos de aplicativos e websites. Curadores, museólogos e educadores teriam, então, de aprender novas técnicas, como UX writing e ferramentas de SEO (Search Engine Optimization), que melhoram o ranqueamento de um site nos resultados de busca de mecanismos como o Google. Afinal de contas, escrever para letras coladas na parede é completamente diferente de redigir para a web.

Por fim, a tecnologia não é inócua nem neutra: todo design é intencional. Quais os parâmetros éticos para a incorporação de estratégias de persuasão e engajamento nos gadgets que povoarão nossos museus? Como lidar com os “restos mortais digitais” de pessoas falecidas ou do passado individual daqueles que preferem ser esquecidos? De que maneira serão utilizados os dados dos usuários coletados nessas formas de interação digital? Em que medida a tecnologia exclui mais do que inclui? Distrai mais do que informa? Substitui o acervo mais do que o valoriza? São inúmeros os desafios e questionamentos.

Não obstante, urge lidarmos com tudo isso agora, o quanto antes e mais do que nunca. Impedir o avanço das tecnologias digitais é como tentar conter uma onda do mar: todo esforço é vão. Profissionais dos museus, preparem-se! Os piratas virtuais já invadiram a nossa praia.

Artigo originalmente publicado no Portal UFMG, em 10/5/2018

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Ana Cecília Rocha Veiga / professora do Curso de Museologia da Escola de Ciência da Informação