Veneno no saleiro

A crise como esgotamento

Por que não conseguimos realizar a democracia completamente? Porque o Brasil está esgotado em seus múltiplos setores. Nas finanças, esgotou-se a velha tradição de financiar gasto público para atender poucos interesses, sem levar em conta a distribuição justa de recursos; na política, esgotou-se a democracia voltada para atender os interesses das corporações isoladas, sem interesse nacional comum, e tratando o rumo histórico dividido entre cada eleição, sem perspectiva do longo prazo; esgotou-se o projeto de desenvolvimento baseado na busca por aumentar a produção industrial tradicional graças a subsídios públicos e empréstimos subsidiados visando aumentar o consumo – o tamanho da dívida e dos juros são provas desse esgotamento –, sem priorizar medidas necessárias para incluir o Brasil na promoção do desenvolvimento sustentável; esgotou-se a possibilidade de aumentar o Estado para atender a voracidade dos partidos por empregos, mordomias   e privilégios; sobretudo esgotou-se o modelo de desprezo à educação de base para o grande público. Este é o centro e a causa principal de todas as manifestações de esgotamento.

A história do Brasil é marcada por sucessivos esgotamentos. O sistema escravocrata esgotou-se por tornar-se ineficiente economicamente e indigno moralmente, mas não fizemos a abolição completa; o Império esgotou-se, mas não completamos a República; os regimes autoritários esgotaram-se, implantamos democracias conservadoras e elegemos governos de esquerda, mas não fizemos as reformas e transformações necessárias para oxigenar a economia, a sociedade, a política e a cultura de que o Brasil precisa para seu futuro. 

Como diria Machado de Assis, em Esaú e Jacó (1904), o país tem como governabilidade o “desacordo no acordo” (Capítulo XXXVII). O Brasil real anda para diante, mas o Brasil oficial anda para trás. A elite do atraso tem muita culpa no cartório – afirmaria o Bruxo do Cosme Velho, na boca do republicano Paulo: “A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco”. Enquanto a mentalidade escravocrata não for destronada de nossos costumes e hábitos, o Conselheiro Aires, mais um grande personagem da galeria machadiana, continuará tendo razão de sobra para assim pensar sobre a proclamação da República: “Nada se mudaria; o regime, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele. Comércio é preciso. Os bancos são indispensáveis. No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição”.

O Brasil se apresenta entre o conformismo e a resistência. A filósofa Marilena Chauí, em Notas sobre a cultura popular (1980), logo desmonta a ideologia que costuma se apresentar nesse tipo de debate: “Atribuir às ordens inferiores pobreza cultural serve, no mínimo, para avaliarmos a miséria dos intelectuais”. Em Conformismo e resistência (1986), Chauí apresenta o que seria uma espécie de dicotomia fundamental que orienta os posicionamentos diante do popular. De um lado, os “ilustrados”, para os quais o povo deveria passar por um processo de aprendizado que lhe possibilitasse superar sua “sensibilidade tosca”, de modo que pudesse elevar-se à razão. Alocado numa temporalidade anterior, o povo como infância da humanidade deveria ser trazido à idade madura das luzes, e não fazê-lo representaria um entrave ao futuro. De outro lado, há os “românticos”, que mantêm uma visão idealizada do povo, defendendo que ele seja preservado como espécie de antídoto para o racionalismo. 

Na avaliação certeira de Marilena Chauí, eis os seguintes estragos cometidos pela concepção romântica de povo: “Com o Romantismo, delineiam-se os traços principais do que se tornou a cultura popular: primitivismo (isto é, a ideia de que a cultura popular é retomada e preservação de tradições que, sem o povo, teriam sido perdidas), comunitarismo (a criação popular nunca é individual, mas coletiva e anônima, pois é a manifestação espontânea da natureza e do Espírito do Povo) e purismo (o povo por excelência é o povo pré-capitalista, que não foi contaminado pelos hábitos da vida urbana)”. Por isso, prevalece nas paradas do sucesso o “conformismo romântico” de Alvorada (1970) diante da “resistência realista” de Autonomia (1977), ambas canções do músico e poeta Cartola (1908-1980).

Alvorada (em parceria com Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho): “Alvorada lá no morro, que beleza/Ninguém chora, não há tristeza/Ninguém sente dissabor/O sol colorindo é tão lindo, é tão lindo/E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo/Alvorada/Você também me lembra a alvorada/Quando chega iluminando/Meus caminhos tão sem vida/E o que me resta é bem pouco/Ou quase nada, do que ir assim, vagando/Nesta estrada perdida”. 

Autonomia: “É impossível nesta primavera, eu sei/Impossível, pois longe estarei/Mas pensando em nosso amor, amor sincero/Ai! se eu tivesse autonomia/Se eu pudesse gritaria/Não vou, não quero/Escravizaram assim um pobre coração/É necessário a nova abolição/Pra trazer de volta a minha liberdade/Se eu pudesse gritaria, amor/Se eu pudesse brigaria, amor/Não vou, não quero”.

Na apreensão do popular, talvez seja mais interessante considerá-lo ambíguo, tecido de ignorância e de saber, de atraso e de desejo de emancipação, capaz de conformismo ao resistir, capaz de resistência ao se conformar. Ambiguidade que o determina radicalmente como lógica e prática que se desenvolvem sob a dominação. Para superar as crises cíclicas que atormentam, há tempos, o povo brasileiro, vamos de Nelson Cavaquinho (1911-1986), em seu Juízo final (1973): “O sol há de brilhar mais uma vez/A luz há de chegar aos corações/Do mal será queimada a semente/O amor será eterno novamente/É o Juízo Final/A história do Bem e do Mal/Quero ter olhos pra ver/A maldade desaparecer”. 

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Marcos Fabrício Lopes da Silva / Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG