Uma cadeia para a inovação
Em débito permanente
Universidades se esmeram em oferecer uma resposta à altura das demandas propostas pela sociedade que as financia
Alguém consegue imaginar o que Juscelino Kubitschek e Guimarães Rosa têm em comum? A resposta está na instituição onde se formaram. Durante alguns anos, o cotidiano de suas vidas passou pelos corredores da UFMG. Com o aporte financeiro da sociedade, a Instituição pôde levar à frente o desafio de formar essa dupla que deu notória contribuição para a política e a literatura, respectivamente.
Oferecer um ensino de qualidade, capaz de qualificar as pessoas que conduzirão o país nas mais diversas áreas, foi a primeira preocupação que deu origem às universidades no mundo. Com o tempo, porém, novas demandas para o desenvolvimento das sociedades exigem que elas desempenhem papel mais complexo. Hoje, não é possível falar de contrapartida social de uma universidade sem mencionar os projetos de extensão, a pesquisa e a inovação tecnológica, a inclusão social, a defesa da diversidade cultural, entre outras ações.
De acordo com o Departamento de Registro e Controle Acadêmico (DRCA), a UFMG possuía, no final de 2012, 31.775 matrículas nos seus 76 cursos de graduação. Somando a pós-graduação, o número de estudantes atinge 43.459. São dados que retratam, em certa medida, o retorno que é oferecido ao investimento feito pela sociedade. Na prática, porém, discutir contrapartida social vai muito além dos números e envolve questões mais profundas. Quais as prioridades de investimento da universidade? Até onde essa contrapartida deve e pode ir? E ainda: qual o conceito de contrapartida social e de onde ele surgiu?
O professor Ivan Domingues, do Departamento de Filosofia da Fafich, qualifica de “obscura” a expressão “contrapartida social”, pois acredita que ela passa uma ideia de dívida ou de compensação, além de conflito ou de oposição entre as partes, como nos duetos musicais. No entanto, reconhece que a dívida existe, pois as universidades são financiadas pelos impostos recolhidos por cidadãos de todos os segmentos sociais. “Daí a ideia de contraparte ou de compensação, paga sob a forma de preparação de quadros profissionais e prestação de serviços, como nos hospitais universitários”, exemplifica Domingues.
O filósofo observa que nos últimos tempos esse sentimento de endividamento aumentou e junto com ele emerge a necessidade de uma compensação ainda maior, motivada por discussão sobre a existência de uma dívida histórica com etnias ou estratos sociais. “Penso que isso tudo faz sentido, mas deverá estar associado ao mérito acadêmico e a critérios socioeconômicos, visto que pobreza e exclusão social no Brasil prevalecem sobre os problemas étnicos e atingem todos os segmentos da população”, afirma.
Domingues, no entanto, aponta outra rota para que essa contribuição à sociedade se efetive. “Devemos caminhar no sentido de proporcionar aos brasileiros o conhecimento científico de ponta, a inovação tecnológica contínua, a elaboração dos valores e das diferentes expressões da cultura que formam a identidade do país, e preparar quadros para a educação de base, vítima de um verdadeiro apagão histórico”, propõe.
Para fora dos muros
Os dados do Sistema de Informação da Extensão da UFMG (Siex) apontam que a Instituição realizou 2.338 ações somente em 2012. Porém, segundo a pró-reitora de Extensão, Efigênia Ferreira e Ferreira, um olhar mais minucioso deixa ainda mais clara a dimensão desse trabalho. “Se analisarmos além dos números, vamos observar a participação de todas as áreas do conhecimento dessa instituição e de todas as unidades acadêmicas. Isso demonstra como é enraizada e consistente a extensão na UFMG”, ressalta.
A política de extensão da Universidade é pautada pela construção de um diálogo entre a Instituição e a sociedade, e uma das preocupações é evitar que suas ações sejam apresentadas como conhecimento pronto e assumam viés assistencialista. “Criamos um processo de avaliação em que os coordenadores e participantes são estimulados a pensar seus projetos considerando a relação dialógica com a sociedade, a interdisciplinaridade e a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”, explica Efigênia.
Se analisarmos além dos números, vamos observar a participação de todas as áreas do conhecimento dessa instituição e de todas as unidades acadêmicas. Isso demonstra como é enraizada e consistente a extensão na UFMG
Essa insistência em dialogar com a sociedade não é de agora. Durante o Encontro de Extensão realizado em 2011 pela Faculdade de Medicina da UFMG, o professor João Antonio de Paula, à época pró-reitor de Extensão e atualmente pró-reitor de Planejamento, apresentou breve relato sobre os eventos que influenciaram a universidade no mundo. Segundo ele, a extensão começa a ser construída em meados do século 19, quando o modo de produção estabelecido pela Revolução Industrial exacerbou as contradições e provocou a entrada em cena de segmentos sociais historicamente marginalizados.
Na Inglaterra, criou-se um movimento de engajamento da universidade que pudesse oferecer contrapontos às consequências nefastas do modelo econômico, logo difundido para outras partes da Europa. “O modelo de extensão que se construiu foi voltado para a prestação de serviço, dentro de um contexto de busca da estabilidade econômica e de defesa do Estado do bem-estar social”, explicou João Antonio de Paula.
Já nos EUA, a ideia de extensão se vinculou às bases do liberalismo econômico e aos interesses do mercado. As universidades foram preparadas para enfrentar os desafios da vida econômica do país a partir da transferência de conhecimento e tecnologia para o setor privado. Num sentido oposto, a extensão na América Latina, mais tardia, se vinculou ao processo de lutas pela democracia. “No Brasil, o cenário atual tem forte influência das demandas do movimento estudantil e das mudanças políticas dos anos 1980 e 90. A partir do processo de reabertura política, novos elementos e grupos vão surgindo na cena política e forçando uma redefinição das questões sociais, até então muito restritas ao mundo do trabalho e à dicotomia sindicato-empresa”, assinalou João Antonio de Paula.
Desde então, a extensão universitária busca, além do diálogo com a sociedade, estabelecer pontes entre a cultura científica e a cultura das humanidades, reconhecendo a importância do conhecimento que se produz em ambientes não acadêmicos. “Os vários sujeitos externos à universidade são legítimos destinatários da ação universitária. Por isso, precisamos encarar a extensão como compromisso indispensável à plena realização da universidade enquanto instrumento de emancipação”, destacou João Antonio.
Esse desafio parece estar presente em cada uma das ações de extensão mantidas pela UFMG. O Programa de atenção integral à saúde da mulher em situação de violência, por exemplo, envolve parceria com o Ministério da Saúde que busca capacitar 1350 profissionais para lidar com a violência contra a mulher. Já na cidade de Montes Claros, o Instituto de Ciências Agrárias desenvolve, desde 2007, o Programa de apoio a agricultores familiares no Norte de Minas Gerais em atividade de produção, higiene e saúde pública, cujo objetivo é promover cultura de desenvolvimento sustentável. Os estudantes são envolvidos na organização de oficinas, seminários e caravanas na região. De um lado, a iniciativa já beneficiou mais de 12 mil pessoas e, de outro, os alunos têm a oportunidade de entrar em contato com a realidade local e com um conjunto de conhecimentos práticos dos agricultores.
Um dos programas de maior visibilidade da UFMG é o Polos de Cidadania. Criado em 1995, é composto por projetos voltados para mediação de conflitos, combate à exploração de crianças e adolescentes e melhoria na qualidade de vida em regiões de baixa renda, como os aglomerados da Serra e do Santa Lúcia, em Belo Horizonte. “O nosso compromisso não é com a resolução do conflito, mas com a criação de condições para que os próprios atores possam encontrar as soluções”, destaca o professor André Luiz Freitas Dias, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich).
Saúde
Para uma parte considerável da população, o elo entre universidade e sociedade se percebe de forma mais concreta por meio da prestação de serviços na área da saúde. No caso da UFMG, essa é uma situação ainda mais nítida, uma vez que o Hospital das Clínicas (HC) está entre os maiores e mais antigos hospitais universitários do país.
Fundado em 1928, suas instalações abrigam 286 consultórios e 501 leitos, divididos nas diversas especialidades médicas. Estima-se que, mensalmente, são realizados aproximadamente três mil atendimentos de urgência, 1.750 internações, 32 mil consultas, 140 mil exames laboratoriais, duas mil cirurgias e 240 partos. Todo o atendimento é viabilizado pelo SUS e cerca de 40% dos pacientes são provenientes de cidades do interior.
Os números dão a dimensão do trabalho realizado. Milhares de pessoas passam diariamente pela estrutura do HC e muitas delas não possuem outra forma de contato com a UFMG. Existem ainda pessoas que, mesmo sem nunca ter frequentado o complexo, usufruem dos serviços de saúde oferecidos, mesmo sem saber. O Núcleo de Educação em Saúde Coletiva, vinculado à Faculdade de Medicina da UFMG, capacita profissionais que atuam na Estratégia de Saúde da Família, beneficiando indiretamente usuários do SUS em diversos municípios.
A Faculdade de Medicina possui ainda o Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico (Nupad), responsável pela análise do exame de triagem neonatal de todos os recém-nascidos de Minas Gerais. Popularmente conhecido como Teste do Pezinho, o exame é realizado com amostra de sangue retirada do calcanhar do bebê geralmente no quinto dia de vida. Independentemente de onde seja realizada a coleta, essa amostra é enviada ao Nupad.
“Nós diagnosticamos as doenças fenilcetonúria, fibrose cística, hipotireoidismo congênito e anemia falciforme. Recém-nascidos com exame positivo para qualquer uma dessas enfermidades são imediatamente encaminhados para tratamento”, explica José Nélio Januário, diretor do Nupad.
Lugar de índio
Desde 2005, a UFMG mantém processos distintos para o ingresso de estudantes indígenas. A Faculdade de Educação (FaE) passou a abrigar o curso Formação Intercultural de Educadores Indígenas, criado em parceria com o Ministério da Educação. A iniciativa ganhou corpo e cresceu. “A partir de 2009, com a implantação do Reuni, esse curso deixou a condição de projeto e passou a ter oferta regular, com ingresso de 35 estudantes indígenas por ano”, explica Shirley Aparecida de Miranda, coordenadora do colegiado do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena.
O processo seletivo inclui etapa peculiar: uma pré-seleção nas aldeias de origem. Somente índios portadores de uma carta de indicação de sua aldeia podem se inscrever no concurso. O objetivo é dar relevância ao trabalho que o índio desenvolve na comunidade e ao retorno que ele poderá proporcionar ao seu povo após a conclusão dos estudos.
As medidas da UFMG para inclusão dos indígenas não param por aí. Em 2012, por meio de convênio com a Fundação Nacional do Índio (Funai), passou a oferecer outras duas vagas para estudantes indígenas nos cursos de Medicina, Enfermagem, Odontologia, Ciências Biológicas, Ciências Sociais e Agronomia, totalizando o ingresso de 12 alunos por ano.
Aluna do curso de Medicina da UFMG, a indígena Adana Kambeba deixou o estado do Amazonas para adquirir formação na capital mineira. “Eu estava muito envolvida com o movimento social indígena e achei que era hora de me concentrar no ensino superior. Escolhi a UFMG por estar entre as melhores do Brasil e por oferecer moradia, transporte, tutoria acadêmica, alimentação e bolsa. Sem falar que o povo mineiro é acolhedor, o que ameniza a saudade de quem vem de longe. É preciso olhar a estrutura física, mas também a estrutura humana”, explica Adana.
No início do ano passado, Adana ganhou visibilidade como atriz do filme Xingu, dirigido por Cao Hamburger. Ela pretende conciliar a medicina com a carreira artística e já faz planos. Quando se formar, quer retornar ao estado natal e trabalhar como médica, atendendo não apenas a sua aldeia, mas também outras populações indígenas. “Existe uma tradição de pajés e curandeiros na minha família e, desde cedo, desenvolvi a vocação para servir. Eu quero juntar ou pelo menos provocar um diálogo entre a medicina tradicional e a indígena”, afirma Adana Kambeba.
De mãos dadas com a arte
Quem estudou na Fafich, entre o final dos anos 1980 e início dos anos 90, cruzou alguma vez com Samuel Rosa e Fernanda Takai, ícones da música pop nacional. Estudantes de Psicologia e Relações Públicas, respectivamente, ambos são exemplos de artistas que carregam a formação da UFMG como importante componente de suas vidas. Mas, além do ensino, a Universidade sempre ofereceu espaços propícios para a apresentação e para o desenvolvimento artístico, em eventos promovidos pelas entidades estudantis ou pela própria instituição.
Em qualquer discussão sobre o desenvolvimento cultural das Minas Gerais, as contribuições do Festival de Inverno da UFMG são reconhecidas. O evento foi organizado pela primeira vez em 1967 na cidade de Ouro Preto. Em plena ditadura militar, a UFMG procurava dar voz aos grupos emergentes e criava ambientes favoráveis para discussão e florescimento da cultura popular.
Ouro Preto sediou o evento por 12 anos. Depois, o Festival passou por Diamantina, São João del-Rei, Poços de Caldas e Belo Horizonte. Finalmente, em 2000, foi novamente realizado em Diamantina, onde permanece até hoje. Em 45 anos de história, o Festival de Inverno testemunhou a articulação e a consolidação da música indígena do Uakti, do teatro de bonecos do Giramundo, da dança do Grupo Corpo e das cenas teatrais do Galpão. Alguns desses grupos tiveram uma origem particular e, em maior ou menor grau, foram impulsionados pelo evento. Outros, porém, iniciaram sua trajetória a partir de uma relação mais estreita com o Festival. É o caso do Grupo Corpo, que surgiu em 1975, após o fundador Rodrigo Pederneiras ter participado e se inspirado em uma oficina realizada com o bailarino argentino Oscar Araiz.
A origem do Uakti também está associada ao Festival de Inverno. Na edição de 1978, Artur Andrés, então professor da Escola de Música da UFMG e futuro flautista da banda, organizou uma oficina de música que aproximou os integrantes do grupo. Após sua formação, o Uakti continuou oferecendo oficinas em diversas edições do Festival, até a década de 90.
Ao longo da sua história, o Festival de Inverno também se renovou diversas vezes, provocando reflexões sobre a arte contemporânea, sobre a transdisciplinaridade e sobre si mesmo. Em 2010, buscando intensificar a relação com a população de Diamantina, foi criado o Espaço Saúde, em parceria com a Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Oferecer oficinas e atividades de prevenção e promoção da saúde em diversos pontos da cidade foi uma estratégia encontrada para levar o Festival a uma parte da população que ficava alheia à programação e convidá-la a se integrar. Na edição de 2011, o Festival mais uma vez inovou e descentralizou-se, acontecendo simultaneamente em outras quatro cidades: Tiradentes, Cataguases, Belo Horizonte e Brumadinho.
O 44º Festival de Inverno, realizado no ano passado, voltou a ter centro em Diamantina e trouxe uma proposta articulada em torno do tema bem comum. O desafio apresentado foi valorizar os interlocutores vinculados aos saberes e práticas locais e tradicionais, as culturas indígena, afrodescendente e popular. O tradicional formato de oficinas foi transformado em grupos de trabalho, estimulando processo colaborativo na construção do conhecimento. “Na era da transdisciplinaridade, não faz sentido criar fronteiras entre as distintas formas de manifestações, como a literatura, o teatro e a música. Por isso, organizamos as atividades em torno de casas temáticas; cada uma explorou inovações na linguagem artística”, explica Sônia Queiroz, diretora de Ação Cultural da UFMG.
A contrapartida que vem dos estudantes
Desde julho de 2012, tramita na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição 200/12, do deputado Izalci Lucas, que torna obrigatória a prestação de serviços de relevância social por estudantes de instituições públicas de ensino superior. “Ao mesmo tempo em que se busca uma contrapartida para a sociedade em relação ao investimento por ela feito, possibilita aos estudantes envolvimento real com a comunidade, por meio do trabalho prestado em áreas afins aos cursos frequentados”, registra o deputado na justificativa da proposta.
A PEC já é alvo de muitas críticas, sobretudo pelo caráter obrigatório da prestação de serviços, que pode lhe render questionamentos quanto à legalidade constitucional. Mas a ideia de uma contrapartida dos estudantes também deu origem a propostas menos radicais e até bem aceitas. Em 2011, o Ministério da Saúde publicou portaria segundo a qual os médicos formados em instituições privadas por meio do Programa de Financiamento Estudantil (Fies) poderiam quitar o valor devido preenchendo necessidades do SUS em municípios carentes.
A interiorização dos médicos é uma demanda crescente do SUS, e as universidades estão, historicamente, entre as grandes aliadas para enfrentar esse desafio. A UFMG, inclusive, foi a primeira instituição de ensino do Brasil a estruturar o Internato Rural. Em 1978, estudantes dos últimos períodos passaram a ser enviados, durante meio semestre letivo, para trabalhar em postos de saúde de cidades menores. Do Internato Rural, surgiu o Manuelzão, projeto de extensão que logo cresceu e se tornou transdisciplinar. Criado em 1997 e tendo como principal foco de atuação a bacia do Rio das Velhas, seu objetivo é defender melhorias ambientais, considerando que a saúde não deve ser tratada apenas sob o viés de medicina e do assistencialismo.
Mas a ideia de se usar a contrapartida estudantil em prol da interiorização da medicina também tem gerado polêmica. Em 2011, os ministérios da Educação e da Saúde sugeriram conceder bônus de até 20% no Concurso de Residência Médica para estudantes que trabalhassem por um ou dois anos na Estratégia de Saúde da Família, em municípios carentes. A manifestação contrária de diversas instituições de ensino levou à suspensão da proposta.