Quem visita o apartamento do produtor cultural Júlio Varella, no bairro Sion, em Belo Horizonte, logo percebe que se trata de um amante das artes. A sala de estar é toda decorada com quadros e objetos de artesanato. Numa cadeira, no canto esquerdo de quem entra pela porta principal, fica um boneco feito pelo Grupo Giramundo em sua homenagem. Embaixo da escada que dá acesso ao segundo andar do imóvel há telas e quadros ainda não expostos. Ele explica que foram pintados por sua mulher, Celme, que apesar de ter ocupado cargo administrativo na Air France, também se dedicava ao Ars Nova – Coral da UFMG e às artes plásticas.
Os dois se conheceram em uma missa dançante do Minas Tênis Clube. Além de ator e produtor, Júlio também é dançarino nas horas vagas. “Sempre gostei de dançar”, diz. Aos 79 anos, ele é frequentador assíduo dos bailes do Clube da Maturidade e da Associação dos Aposentados e Pensionistas (OAP) da UFMG. “Toda quarta e todo sábado eu vou dançar. Vira e mexe tem outras danças que os amigos chamam para ir. A OAP mesmo tem um baile na primeira terça-feira do mês que é uma delícia, vou sempre”, revela.
As horas vagas e os momentos de lazer, no entanto, sempre foram raros na vida desse mineiro de Santana de Ferros. Júlio conta que já chegou a ocupar seis funções ao mesmo tempo. Obrigado a se dividir entre a Pró-reitoria de Extensão da UFMG, o Ars Nova, a Orquestra Sinfônica da Universidade, a Fundação de Arte de Ouro Preto, o Teatro Universitário e a direção do Teatro Marília, o produtor trabalhava, em média, 14 horas por dia. Foi nessa época, com pouco mais de 30 anos, que ele montou um quarto abaixo dos camarins do Teatro Marília e ali morou por meia década. O objetivo, segundo ele, era facilitar a rotina turbulenta. “De manhã cedo, antes de ir para a Universidade, eu cuidava da infraestrutura do local e fiscalizava até a limpeza”, lembra.
Nas décadas de 1960 e 1970, os grupos mineiros eram pouco profissionais e quase não atraíam público. Alguns me pediam um mês de espetáculos, mas não aguentavam uma semana
O modo como administrava o espaço recebeu elogios, mas também rendeu-lhe críticas. Com a missão de tornar o Marília rentável, Varella buscava grupos de fora do estado para atrair público e deixar a casa cheia. Enquanto isso, as trupes locais tinham temporadas curtas, de no máximo duas semanas, com o objetivo de condensar a presença do público. Ele acredita que se tivesse agido de forma diferente, o Teatro poderia ter sido fechado. “Nas décadas de 1960 e 1970, os grupos mineiros eram pouco profissionais e quase não atraíam público. Alguns me pediam um mês de espetáculos, mas não aguentavam uma semana”, justifica. Ele lembra que o espaço ajudava a manter a escola de enfermagem da Cruz Vermelha, já que a instituição é proprietária do prédio que abriga o Teatro.
Para o produtor, o dilema entre o lucro e a valorização da arte em todas as suas formas sempre vai existir. “Antigamente o que se ganhava na bilheteria era para pagar os funcionários, a casa de espetáculo e a produção cultural. Era preciso render para continuar produzindo”, reflete. Ele diz que, atualmente, com as leis de incentivo cultural, os grupos têm mais facilidade para conseguir recursos, mas ainda enfrentam muitas dificuldades nessa área.
O ano da estafa
O período mais intenso de trabalho, segundo Júlio, foi em 1974, quando o Festival de Inverno da UFMG, até então realizado em Ouro Preto, se estendeu para outras 16 cidades mineiras. O produtor, que atuava na organização do evento desde a sua estreia, em 1967, assumiu na terceira edição do Festival o cargo de diretor executivo. Quatro anos depois, além de cuidar da programação das 16 cidades, Júlio teve ainda a tarefa de organizar o Festival Internacional de Teatro de Bonecos, no Teatro Marília.
“Foi uma loucura”, resume Júlio. Naquele ano, ele teve que realizar o evento sem a colaboração do professor Fábio Moura, da Faculdade de Ciências Econômicas, que atuou como chefe de gabinete da Reitoria e como diretor administrativo em várias edições do Festival. “O reitor não permitiu que ele fosse para Ouro Preto em 1974”, conta Varella. “Sobrou tudo para mim.”
"É difícil relacionar as providências exigidas para sua execução. Basta apontar aquelas relacionadas com o transporte de pianos, cavaletes para pintura e bancadas para gravura, grupos artísticos, alojamento, camas, colchões, restaurantes, salas de aulas, espaços para apresentações e número infindável de problemas a serem resolvidos."
Em depoimento no livro de memórias Júlio Varella, 50 anos fazendo arte, o professor Fábio relata as dificuldades que os dois enfrentavam durante a realização do evento. “É difícil relacionar as providências exigidas para sua execução. Basta apontar aquelas relacionadas com o transporte de pianos, cavaletes para pintura e bancadas para gravura, grupos artísticos, alojamento, camas, colchões, restaurantes, salas de aulas, espaços para apresentações e número infindável de problemas a serem resolvidos. Só quem viveu a promoção sabe a importância do trabalho de Júlio Varella”, testemunha.
O produtor diz que, quando os eventos terminaram, ele chegou a ser internado em um hospital psiquiátrico. “Foi a única vez que tive trauma de trabalhar tanto”, afirma. Indagado se depois desse episódio ele chegou a diminuir o ritmo, Varella responde com naturalidade que não. “Eu melhorei e continuei. Para aliviar o estresse eu trabalhava e mudava de assunto”, pontua.
Além do gosto pelo que fazia, Júlio explica que trabalhava muito porque foi arrimo de família durante 26 anos. Seu pai se aposentou aos 39 anos de idade e passou a receber um salário modesto para sustentar a família numerosa. Com a ida do irmão mais velho para o Rio de Janeiro, coube ao produtor o papel de zelar pelos mais novos.
Dentro e fora dos palcos
Acostumado a fazer várias coisas ao mesmo tempo, Júlio afirma que desde criança sempre gostou de cantar e dançar. Segundo filho em uma família de 17 irmãos, ele diz que foi muito influenciado pela mãe, que era pianista. “Meus irmãos reclamavam que ela me dava muita atenção, pois éramos muito próximos, nossos gênios combinavam”, comenta. Seu primeiro emprego foi como representante farmacêutico, mas ao perceber que não se interessava pelo ofício, decidiu fazer teatro e, em 1961, passou em um teste para ator do Teatro Universitário (TU).
Um dos fundadores do extinto Teatro Experimental, o produtor lembra que se dedicava muito à profissão. Seu grande talento, no entanto, logo foi percebido fora dos palcos. Os professores elogiavam sua habilidade como administrador e seu feeling para a produção cultural. “A princípio eu queria ser ator. Depois vi que não tinha tanta habilidade para a profissão e que estava me sobressaindo muito na parte técnica”, pondera.
Hoje, Júlio se diz realizado com sua trajetória. “Fui o primeiro produtor cultural de Minas Gerais. Todos me reconhecem como aquele que idealizou o que é atuar nessa área”, orgulha-se.
Curiosidades e reflexões
Se não tivesse sido produtor cultural, Júlio Varella diz que teria montando um restaurante. “Não é de hoje que percebo: comida é uma das coisas mais rentáveis”, explica. Todo ano, é ele quem faz a ceia de natal da família. Sua especialidade é pato, mas o produtor também faz feijoada light, comida mineira e até bataiaque, um prato japonês.
É difícil relacionar as providências exigidas para sua execução. Basta apontar aquelas relacionadas com o transporte de pianos, cavaletes para pintura e bancadas para gravura, grupos artísticos, alojamento, camas, colchões, restaurantes, salas de aulas, espaços para apresentações e número infindável de problemas a serem resolvidos.
O produtor defende que, quando é bom, um grupo consegue conquistar seu espaço. “Mas tem que batalhar, tem que ir atrás, mexer os pauzinhos, pedir apoio de empresas, buscar recursos em todo lado. Ser bem relacionado ajuda muito. Muitas vezes, o grupo é novo e não mostrou competência ainda, mas depois que ele está sedimentado, quase sempre consegue apoio”, argumenta.