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Nº 20 - Ano 12 - 20.04.2013

Uma cadeia para a inovação

O trabalho e os trabalhos

Anos atrás, uma grande revista semanal brasileira publicou editorial relatando um episódio protagonizado por dois médicos, professores universitários de uma das maiores e mais renomadas universidades públicas brasileiras. O primeiro deles era, na época, professor titular e chefe do serviço de Ginecologia e Obstetrícia, e o segundo, um de seus mais importantes assistentes, médico maduro, dono de currículo invejável do qual constavam todas as titulações acadêmicas possíveis e centenas de trabalhos científicos, muitos dos quais publicados em periódicos internacionais classificados como Qualys A1, com elevado Fator de Impacto.

O professor titular tinha uma filha que ficara grávida pela primeira vez e o acompanhamento de sua gestação foi confiado a esse assistente. Tudo transcorria bem até o início da segunda metade da gravidez quando adveio uma complicação grave com sério risco de morte.

A moça foi atendida várias vezes pelo assistente e, a partir de um determinado dia, seu pai pediu a opinião de um segundo obstetra, cuja principal credencial era ser médico de uma maternidade da rede pública do estado. A solicitação causou enorme constrangimento e gerou um diálogo áspero entre os dois médicos, motivado supostamente pela pergunta (não explicitada): por que fui preterido em favor dele, cujo currículo é incomparável ao meu?

Pondo fim ao diálogo constrangedor, o professor-pai disse a seu assistente: “você tem títulos e ele, experiência. E ela é minha filha!”

Esse fato dá o que pensar e instiga uma discussão que não tem sido sistemática nos ambientes universitários brasileiros contemporâneos: o do não necessário paralelismo entre a titulação e a experiência prática. Como consequência dessa discussão, surge outra questão não menos importante: a das diferenças dentro do ambiente acadêmico entre os “trabalhos” e o “trabalho” ou entre as “publicações” e as “atuações”.

Ilustração para a Revista Diversa - Ano 12 - Número 20 - abril de 2013
Desirée Cunha Rodrigues

Não há como negar que, de modo claro ou velado, nos últimos tempos tem sido dado mais valor acadêmico às publicações do que à atuação profissional. Professores que se dedicam exclusivamente à docência, principalmente no âmbito da graduação, tendem a ser menos valorizados e até menos visíveis do que aqueles que publicam muito, numa subserviência quase condenatória ao “publique ou pereça” (publish or perish). Julgo ser oportuno e indispensável que as universidades abram o debate e repensem essa questão.

Nessa perspectiva, proponho aqui duas reflexões: a primeira diz respeito ao exercício das profissões. O exercício de qualquer profissão que exija curso superior é sempre o resultado do somatório de um corpo de conhecimentos teóricos que a fundamenta e de um longo e complexo treinamento prático que resulte numa performance na mais precisa e profunda acepção desse termo: exercício de atuar, de desempenhar. A medicina é um exemplo paradigmático desse somatório: o exercício profissional do médico se baseia numa enorme e indispensável base teórica, mas o ato médico, o momento da atuação médica, é um destilado puro de performance; diante de um paciente o médico precisa “apenas” atuar.

A percepção dessa dualidade não é homogênea entre as várias profissões; as profissões mais técnicas (mais próximas da ciência pura) costumam ser mais vistas sob o viés do conhecimento teórico que as apoia, enquanto aquelas entendidas como mais artísticas costumam ser encaradas na perspectiva da performance. Apesar disso, em todas está presente a dualidade básica teoria-performance.

Idealmente, o ensino de uma profissão, para ser completo, tem que atender às duas demandas: formar uma base teórica útil e treinar o profissional para a prática; se essas dimensões não forem adequadamente atendidas, o processo resultará em um ensino deficiente e em um profissional com lacunas de conhecimento.

A segunda reflexão parte da pergunta: como essa dualidade deve ser inserida na vida acadêmica? Se considerarmos que as universidades têm três missões primordiais: transmitir conhecimento (ensino), gerar conhecimento (pesquisa) e disponibilizar esse conhecimento para a comunidade (extensão), é razoável supor que uma universidade de qualidade pressupõe a integração plena e equilibrada dessas três missões. Em iguais condições, a instituição deve estar preparada para graduar e pós-graduar, para pesquisar e para disponibilizar de modo efetivo esse conhecimento para a comunidade que a contém e à qual ela está subordinada.

Graduar significa oferecer conhecimentos teóricos e práticos de modo gradativo, eficaz e cumulativo, e o resultado deve ser a formação (não apenas a informação) de um profissional que conheça sua “matéria” e seja capaz de praticá-la. A tarefa de ensinar é complexa e sutil e, sempre, resultado de um esforço coletivo. A especialização de um grupo de professores na tarefa de ensinar é extremamente saudável para a universidade.

Ilustração para a Revista Diversa - Ano 12 - Número 20 - abril de 2013
Ilustração para a Revista Diversa - Ano 12 - Número 20 - abril de 2013 Lucas Braga / UFMG

Diversidade na unidade

Pesquisar significa procurar entender, inquirir, indagar profundamente, aprofundar. A pesquisa em todos os níveis e a publicação de seus resultados são vitais, condição sine qua non para a vida universitária e social, mas ela não pode e não deve eclipsar as outras missões da universidade: graduar e colaborar com a comunidade. O ensino “puro” de graduação e de pós-graduação é tão essencial e vital para a vida universitária quanto a atividade de pesquisa, e não há nenhum argumento técnico ou ético que justifique sua menor valorização diante das atividades que resultem em publicações ou outras formas de divulgação pública de resultados.

A universidade deve atender à sua vocação etimológica: a diversidade na unidade. Deve oferecer espaço para todas as vocações docentes: a do pesquisador puro, a do docente puro e a dos que integram as duas tarefas.
A persistir o satus quo, corremos o risco de assistir ao triunfo dos trabalhos sobre o trabalho, com escolas de engenharia sem obras, escolas de medicina sem pacientes e escolas de música silenciosas.

João Gabriel Marques fonseca