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Nº 20 - Ano 12 - 20.04.2013

Uma cadeia para a inovação

Um clínico entre o choro e as veredas

Perfil Luiz Otávio Savassi Rocha

O médico Luiz Otávio Savassi Rocha é um autodeclarado chorão. Não no sentido das lágrimas, mas por ser um apreciador do choro, o gênero musical. Ele também é um profundo conhecedor da obra de Guimarães Rosa. Professor e médico apaixonado pelo que faz, tornou-se famoso pelas lições valiosas sobre autópsias – as sessões anatomoclínicas. Costuma dizer que, para ele, não há distinção entre trabalho, estudo e lazer – tudo é uma coisa só.

Guarda uma profunda relação com a Faculdade de Medicina da UFMG, que começou ainda nos tempos de criança, quando, da varanda da casa onde nasceu, na Rua Guajajaras 27, quase esquina com a Avenida Afonso Pena, acompanhava os trotes aplicados aos alunos recém-aprovados no vestibular, os “calouros”. “É uma das lembranças mais remotas que tenho da infância. Os calouros fantasiados, puxando carroças como se burros fossem, descendo a Avenida Carandaí em direção à Avenida Afonso Pena”, recorda-se.

Afirma que a opção pela Medicina veio do fascínio pelo conhecimento, mas que poderia ter estudado Física Quântica, Filosofia, Letras, Música ou tantas outras disciplinas e ainda assim estaria satisfeito. Mas, para sorte da Medicina e azar das outras áreas, Luiz Otávio graduou-se em 1968, sendo agraciado com a Medalha Oswaldo Cruz por ter sido o aluno que obteve as melhores notas durante o curso. No ano seguinte, ingressou como professor do Departamento de Anatomia Patológica e Medicina Legal da Faculdade, transferindo-se, quatro anos depois, para o de Clínica Médica. Desde então, não abandonou mais a instituição. Os três filhos e a esposa de Savassi também se graduaram pela UFMG.

Luiz Otávio Savassi Rocha – não confundir com o irmão Paulo Roberto, um ano mais novo, professor titular de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG, também conhecido por Dr. Savassi – sempre foi obstinado pelo estudo. “Quando éramos crianças e íamos, nas férias, para Cordisburgo, enquanto eu queria sair, ele pegava os livros nas estantes da minha tia e ficava lendo. Ela tinha que falar para ele largar os livros e fazer outras coisas. Meu irmão é totalmente apegado ao conhecimento, sempre foi o primeiro em tudo que fez. Com o Luiz Otávio, aprendi a postura, a ética, a capacidade de ouvir o outro”, conta Paulo Roberto.

Luiz Otávio Savassi Rocha
Luiz Otávio Savassi Rocha Foca Lisboa / UFMG

Ser atípico

Com modéstia e naturalidade, Luiz Otávio se define como um “ser atípico na academia”. Não fez mestrado nem doutorado. É que, quando começou a carreira, os tempos eram outros. Não havia, por exemplo, concursos como hoje. A indicação para a docência veio do catedrático e mestre Luigi Bogliolo (1908–1981), um exigente professor italiano, de quem havia sido aluno e sobre o qual escreveu o livro Vida e obra de Luigi Bogliolo, com mais de 500 páginas, publicado em 1992.

Conta que não fez pós-graduação pelo fato de ser exigente demais consigo mesmo: “Se estivesse na banca examinadora, eu relutaria em aprovar muitos trabalhos de mestrado ou doutorado, a começar pelo tratamento dado à língua portuguesa. Elaborar um trabalho científico de alto nível na área clínica é muito difícil”.

“Se foi por meu amor à Faculdade de Medicina da UFMG, acredito que tenha sido justo"

Luiz Otávio Savassi pode até fugir ao padrão que hoje impera na academia – na UFMG, por exemplo, mais de 90% dos docentes do quadro atual são mestres ou doutores. Mas, nem por isso, sua dedicação deixou de ser reconhecida. Em 2010, foi agraciado com o título de Professor Emérito. “Se foi por meu amor à Faculdade de Medicina da UFMG, acredito que tenha sido justo. Não pleiteei o título”. Querido pelos alunos, acabou escolhido patrono de cinco turmas e de doutorandos; em 2011, ano do centenário da Faculdade, a 130ª turma, que colou grau no mês de julho, ganhou o nome de “Turma Professor Luiz Otávio Savassi Rocha”.

Suas contribuições para a profissão são muitas, com destaque para a coordenação das sessões anatomoclínicas do Hospital das Clínicas da UFMG. Entre maio de 1995 e outubro de 2012, conduziu mais de 200 delas. Tais sessões consistem na avaliação crítica, baseada em autópsias, do diagnóstico e do tratamento dos pacientes falecidos no Hospital das Clínicas – e, eventualmente, em outras instituições –, funcionando como espécie de controle de qualidade dos cuidados dispensados aos pacientes.

Aluno e, posteriormente, colega de Savassi, o professor da Faculdade de Medicina e da Escola de Música da UFMG João Gabriel Marques Fonseca refere-se às aulas do mestre e amigo como um “contato inesquecível”. “A primeira autópsia a que assisti na vida, em 1971, foi feita pelo Savassi. Era a de um bebê, o que é sempre uma coisa muito consternadora, mas a forma com que ele abordou a questão foi muito marcante. A clareza pedagógica me confortava. É uma dessas lições que se mantêm na memória 40 anos depois”.

Entre 2008 e 2010, o professor Luiz Otávio dedicou-se à preparação do livro Sessões anatomoclínicas – Valor pedagógico lato sensu, publicado em 2010 pela Coopmed. “É trabalho sui generis, um livro médico, mas também uma obra literária, com uma visão mais ampla do ser humano. O posfácio é uma das coisas mais notáveis que eu já vi. Mostra como estudar a morte pode contribuir para a vida”, avalia o professor João Gabriel.

“É trabalho sui generis, um livro médico, mas também uma obra literária, com uma visão mais ampla do ser humano. O posfácio é uma das coisas mais notáveis que eu já vi. Mostra como estudar a morte pode contribuir para a vida”

Clínico e cardiologista, Savassi segue por um caminho difícil em tempos de especializações e subespecializações cada vez mais predominantes. “Hoje, o paciente vai a muitos especialistas, mas faltam médicos capazes de enxergar o todo. As especialidades são mais bem remuneradas, ao passo que o clínico tem que estudar muito, porque os casos se sucedem, abrangendo as mais diversas áreas: gastroenterologia, reumatologia, nefrologia, pneumologia, hematologia, cardiologia, neurologia, endocrinologia, infectologia... No meu consultório, aparece de tudo. Numa área mais restrita, fica mais fácil. Se você é ortopedista, especialista em joelho, e se o problema é na mão, aí não é com você. O clínico é como o maestro de uma orquestra, do qual se exige um conhecimento enciclopédico, uma visão de conjunto.”

Sobre a docência, o professor Savassi admite que sempre foi muito exigente com os alunos: “Dificilmente se reprova um aluno hoje e isso é muito sério. Se o jovem passou no vestibular, ele já pode se considerar médico; além disso, convivemos com a proliferação descontrolada de escolas médicas, fenômeno que já foi comparado à concessão de franquias de McDonald’s. Se você for muito condescendente como professor de Medicina, o resultado será catastrófico, ensejando a graduação de pessoas totalmente inabilitadas para a prática da profissão. O professor tem que ser exigente, mas acolhedor; tem que ser um desequilibrador, que abala, mas sem derrubar”.

‘Royal straight flush’

Em pouco mais de uma hora de conversa, Luiz Otávio cita o poeta irlandês William Butler Yeats, o músico Toquinho, o físico Albert Einstein, o psicanalista Winnicott, o jornalista Zuenir Ventura e por aí vai. As leituras e a música sempre estiveram presentes na vida desse profissional. Sua obra João Guimarães Rosa, publicada em 1981, se tornou indispensável para estudiosos do escritor. Dentre os textos que publicou a respeito da obra rosiana, destaca-se um ensaio original, ilustrado, em que focaliza o “manuelzinho-da-croa” (Charadrius collaris), ave ribeirinha de forte conotação simbólica em Grande sertão: veredas. Savassi faz questão de lembrar que o pai, Cristóvão Colombo Rocha, nasceu em Cordisburgo em 1917, na mesma rua em que nascera, nove anos antes, Guimarães Rosa, que, “coincidência ou não”, também se graduou pela Faculdade de Medicina da UFMG.

“Hoje ele é amplamente reconhecido como uma das pessoas que mais conhecem a escrita de Guimarães Rosa. Quando a editora Nova Aguilar editou a obra completa do escritor, trouxe no final pouco mais de 80 referências consideradas indispensáveis para quem quer se aprofundar nas obras de Rosa. Entre nomes como Carlos Drummond de Andrade e Antonio Candido, está o livro do Savassi, que foi escrito em comemoração à criação do Centro de Memória da Faculdade de Medicina da UFMG. Um trabalho despretensioso, feito de forma muito simples do ponto de vista da impressão gráfica, mas que é uma obra-prima”, destaca João Gabriel Fonseca.

A mãe do professor, Neli Costa Savassi, nasceu no Bairro da Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro, o berço do choro. “Coincidência ou não” – Savassi diz novamente –, “eu me tornaria um chorão, sócio do Clube do Choro de Belo Horizonte e tocador (apenas razoável) de pandeiro em rodas de choro.” Autodidata, aprendeu a tocar o instrumento observando os percussionistas já consagrados. Em janeiro de 1995, iniciou troca de correspondências com o músico italiano Angelo Zaniol, chorão confesso e professor da Universidade de Veneza. Em julho daquele mesmo ano, em visita ao Brasil, Zaniol se hospedou na casa de Savassi e o encontro rendeu a composição de um memorável choro, Escala real.

Escrito pelo italiano em homenagem à hospitalidade da família do médico, Escala real está no mesmo livreto que traz peças dedicadas a grandes compositores brasileiros como Pixinguinha, Ary Barroso e Waldir Azevedo. A explicação: “Escolhi este título, que soa um pouco extravagante, mesmo para um choro, porque as cinco pessoas que formam a família Savassi Rocha (Luiz Otávio, os três filhos e a esposa) me parecem harmoniosamente unidas e vencedoras na vida como a escala real (Royal straight flush) no jogo de pôquer. Em suma, o máximo”.

Paula Alkmim