Na UFMG, liderança feminina na pesquisa cresceu em seis das oito áreas do conhecimento

Resquícios de uma tradição em que homens herdavam, de seus pares, chefias de laboratório e de grupos de pesquisa estão paulatinamente cedendo lugar à participação feminina. Os espaços acadêmicos vêm sendo ocupados cada vez mais por mulheres, incluindo a liderança de grupos de pesquisa e os cargos de gestão – mesmo em unidades acadêmicas e departamentos tradicionalmente dirigidos por homens.

De 2007 a 2018, a presença feminina em funções de liderança na pesquisa cresceu em seis das oito áreas do conhecimento, segundo levantamento da Pró-reitoria de Pesquisa – PRPq da UFMG. Um dos destaques é a área de ciências agrárias, na qual a liderança de mulheres passou de 23,68%, no primeiro ano da série, para 41,03%, em 2018. Em grupos de pesquisa das ciências sociais aplicadas, essa presença saltou, no período, de 29,51% para 43,18%.

Também na UFMG, dos 2.076 pesquisadores que figuram como inventores nos depósitos de patentes efetuados pela Coordenadoria de Transferência e Inovação Tecnológica, 880 (42%) são mulheres, incluindo docentes, alunas de graduação e pós-graduação.

A professora Nilma Lino Gomes, da Faculdade de Educação, pondera que essa gradativa mudança de gênero na ciência só existe devido às lutas sociais por direitos e emancipação, desencadeadas pelas mulheres. “Historicamente, as mulheres tensionam a sociedade e o campo da produção do conhecimento a se democratizarem em relação ao gênero. O conhecimento ainda é um espaço masculino, eurocentrado e branco em nosso país. Precisa ser democratizado e descolonizado”, defende.

Percepção de liderança

Apesar dos avanços, ainda há muito a conquistar, alerta a professora Andréa Mara Macedo, diretora do Instituto de Ciências Biológicas (ICB), um dos maiores centros de pesquisa do país. Ela recorre ao conceito de “currículo oculto” para discutir a percepção que os pesquisadores têm de seus pares.

“Embora registre muito bem o trabalho de cada pesquisador, com número e peso de artigos, por exemplo, há algo que o Lattes [Plataforma do CNPq] não consegue computar: como uma pessoa, por sua excelência, é percebida pelos pares? O quanto ela seria ouvida sobre uma determinada estratégia ou política? É isso que chamo de currículo oculto”, pondera Andrea Macedo. Ela acredita que, sob esse aspecto, a prevalência ainda é masculina, pois quando questionadas sobre quem são as lideranças de uma instituição como a UFMG, as pessoas, na maioria das vezes – mesmo as mulheres –, mencionam homens.

Outro obstáculo enfrentado pelas mulheres na academia é o preconceito de gênero, que “sempre houve e continua existindo”, assegura Maria de Fátima Leite, também pesquisadora do ICB. Ela conta que em concurso a que se submeteu no ano passado para tornar-se professora titular ouviu “comentários constrangedores” de integrantes da banca examinadora, composta somente por homens. “O meu sucesso científico foi considerado um golpe de sorte”, critica.

International Fellow do Howard Hughes Medical Institute (EUA), de 2007 a 2012, Fátima Leite alcançou notoriedade internacional em 2003 ao participar da descoberta, ao lado de pesquisadores dos Estados Unidos, de uma organela celular – o retículo nucleoplasmático – que armazena e regula a liberação de íons cálcio no núcleo das células.

Há também o viés étnico, para o qual chama a atenção a professora Nilma Lino Gomes, ex-titular do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos. Ela comenta que há baixo número de mulheres negras na academia, estando, as poucas presentes, mais representadas nas humanidades. Tal situação, destaca a professora, é reflexo de profundas desigualdades raciais, sociais e de gênero que impactam as condições de estudo e as possibilidades de escolha da população negra e pobre em nosso país.

Segundo Nilma Lino, as ações para estimular a presença de mulheres na ciência necessitam de um recorte de raça, “ou seja, mais mulheres negras na ciência”. Em sua opinião, “o contato emancipatório do conhecimento com a diversidade é importante para a superação de preconceitos e ignorâncias na relação com o outro". E lembra que “nem sempre ser um PhD da ciência significa excelência na relação com a alteridade”.

Nova postura

A professora Maria de Fátima Leite considera positivas medidas recentes que contribuem para que mulheres possam conciliar a vida na academia com as atividades em família, como a extensão de bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para alunas que engravidam.

A medida também é bem-vista pela pesquisadora Fernanda Tonelli, que tem bolsa de pós-doutorado Junior no Laboratório de Nanobiotecnologia do ICB. Embora não tenha pessoalmente vivido situações de discriminação no ambiente acadêmico, Fernanda diz acompanhar, nos grupos de que participa em redes sociais, relatos de bolsistas que deixaram cursos de pós-graduação ao engravidarem ou terem filhos, devido à pressão dos orientadores para que a entrega de resultados ocorresse na mesma velocidade que a exigida de outros pesquisadores.

Fátima Leite também observa uma mudança de postura na organização de eventos: “Atualmente, quando sou convidada para algum congresso, sobretudo no exterior, me perguntam se preciso de algum tipo de auxílio para levar meu filho. Isso não existia, é um progresso, talvez porque haja mais mulheres participando desse trabalho de organização.”

A professora, no entanto, não enxerga apenas problemas nos desafios que o mundo acadêmico impõe às mulheres. “Porque passamos por tantas dificuldades, acabamos desenvolvendo muitas habilidades, como a capacidade de ter foco, de aproveitar melhor o tempo, pois é tempo o que nos falta, já que somos muito demandadas também pelos cuidados com filhos, pais idosos e tarefas domésticas”, pondera.

Estrutura androcêntrica

O pesquisador Marcel Freitas, que defendeu em janeiro deste ano tese de doutorado sobre trajetórias de mulheres cientistas na UFMG, afirma que existe uma “estruturação ainda androcêntrica na produção científica na Universidade”. No trabalho, desenvolvido na Faculdade de Educação sob orientação da professora Adla Betsaida Martins Teixeira, ele demonstra que há prevalência masculina nos índices de produtividade. Segundo ele, “a diferença não é grande, mas existe e é recorrente”.

Tendo o ano de 2016 como base, Marcel Freitas mensurou os seguintes itens de produtividade, sempre separados por grupos de sexo: artigos científicos publicados, trabalhos ou resumos de trabalhos publicados em anais de eventos, orientações de mestrado e doutorado e supervisões de pós-doutorado.

Para comparar a participação de homens e mulheres na produção de ciência na UFMG, ele levantou o número de artigos publicados por 2.021 docentes de ambos os sexos que em 2016 atuavam em 74 cursos de pós-graduação stricto sensu. “Todos têm doutorado e atuam apenas no mestrado e no doutorado”, explica o pesquisador.

A distribuição por sexo é desigual entre as áreas, e as mulheres concentram-se principalmente nas ciências humanas e na saúde. Nesta última, contudo, embora haja mais mulheres, são os homens que apresentam maior produtividade acadêmica, diz o pesquisador.

“A maior produtividade dos homens é nas ciências exatas, o que é esperado, por ser a área em que há menos mulheres, mas a segunda área de maior produtividade deles é a saúde, em que o número de mulheres é um pouco maior”, compara Marcel Freitas.

O pesquisador levanta a hipótese de que há uma divisão de trabalho, em que os homens atuam na criação e na produção científica, enquanto grande parte das mulheres se ocupa de tarefas ligadas ao ensino e à burocracia. “Isso replica na academia o ambiente doméstico e uma antiga imagem social da mulher cuidadora – não aquela que pensa, cria, inventa, desenvolve uma vacina, um método ou um equipamento”, diz.

Marcel Freitas também afirma que a área de ciências exatas ainda permanece como “uma espécie de santuário masculino”. Segundo ele, as mulheres são minoria nas exatas mesmo nos países escandinavos e europeus, nos quais elas têm muita proeminência na academia e se distribuem mais igualitariamente entre as áreas.

De acordo com o levantamento da PRPq, a liderança feminina de grupos de pesquisa nas áreas de ciências exatas e da terra, na Universidade, caiu de 33,33% em 2007 para 27,27% em 2018, o que representa uma redução de 6,06%. Contudo, o terceiro maior aumento de grupos chefiados por mulheres na UFMG, nos últimos dez anos, foi no campo das engenharias – crescimento de 10,11%, tendo passado de 22,73% para 32,84%.

Confira aqui o levantamento da PRPq na íntegra.

Paridade ainda distante

De acordo a Organização das Nações Unidas (ONU), “a maioria dos países, industrializados ou não, está longe de alcançar a paridade de gênero nas disciplinas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática, em todos os âmbitos do sistema educacional”. O alerta foi feito em mensagem divulgada no Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência (11 de fevereiro), assinada pela diretora-geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Audrey Azoulay, e pela diretora-executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka.

O documento ressalta que é difícil para as meninas acreditarem em si mesmas como cientistas, exploradoras, inovadoras, engenheiras e inventoras quando as imagens que veem nas mídias sociais, nos livros didáticos e na publicidade refletem os papéis estreitos e limitantes de gênero.

Outro relatório, Gender in the global research landscape (Gênero no cenário global de pesquisa, em tradução livre), publicado em 2017, mostra um cenário mais favorável em países como Brasil e Portugal, nos quais 49% da população de cientistas é feminina, o que indica que alcançaram a paridade de gêneros nesse campo. O estudo calculou o número de homens e mulheres pesquisadores em doze países, no período de 2011 a 2015. Considera-se que há equilíbrio de gênero quando as mulheres compõem de 40 a 60% de qualquer grupo.

Segundo o relatório, em outros cinco países (Reino Unido, Canadá, Austrália, França e Dinamarca), mais a União Europeia, o número de publicações por mulheres já atingiu pelo menos 40% do total. Entre 1996 e 2000, somente Portugal contava com taxas superiores a 40%. A quantidade de pesquisadoras, no entanto, muda de acordo com a área do conhecimento, segundo o relatório.

“Equilíbrio de gênero é sempre muito bom, para incorporar diferentes formas de pensar”, defende a professora Karla Balzuweit, do Departamento de Física. Em sua opinião, é preciso estimular também nas meninas, desde o ensino fundamental, o interesse pelas chamadas ciências duras. “É uma profissão como qualquer outra”, pondera. Mas adverte que é muito difícil equilibrar as atribuições acadêmicas, sobretudo a parte experimental, com a vida em família. “A maioria dos pesquisadores trabalha de domingo a domingo, pois não se pode parar uma experiência no meio.”

Segundo Karla Balzuweit, uma das perguntas feitas à sua ex-aluna de mestrado Thaís Milagres de Oliveira, atualmente doutoranda da professora Sara Bals, no Centro de Microscopia em Ciência dos Materiais da Universidade de Antuérpia (Bélgica), era exatamente se ela tinha disponibilidade para usar os microscópios eletrônicos em horário noturno e fins de semana.

Para Marcel Freitas, os laboratórios – não apenas nas ciências exatas – ainda podem ser ambientes hostis para o feminino. “Trata-se de uma postura tácita, inconsciente, um habitus internalizado, no dizer do sociólogo francês Pierre Bourdier”, afirma. Em sua opinião, é importante que haja mais mulheres cientistas e conscientes “do caráter androcentrado da sociedade que se reproduz na universidade”.

Grupos e bolsas

Em 2018, os grupos de pesquisa na UFMG ainda são liderados, em sua maioria, por homens – as mulheres coordenam 44,61% do total. Na distribuição pelas oito áreas do conhecimento, elas são maioria em apenas três: 53,85% em linguística, letras e artes, 52,48% em ciências humanas e 50,94% em ciências da saúde. Se comparado com 2007, o quadro atual mostra redução da liderança feminina em duas áreas: de 6,45% em linguística, letras e artes e de 6,06% em ciências exatas e da terra.

Foi registrado crescimento em todas as outras seis áreas: ciências agrárias (17,34% de aumento da presença feminina), ciências biológicas (6,46%), ciências da saúde (7,85%), ciências humanas (5,23%), ciências sociais aplicadas (13,67%) e engenharias (10,11%).

Em relação às bolsas de produtividade do CNPq, as mulheres correspondem a 35,96% dos 748 detentores desse incentivo na UFMG. Ele é concedido a pesquisadores “que se destaquem entre seus pares, valorizando sua produção científica”, segundo critérios normativos adotados pela agência de fomento.

Dos 63 pesquisadores da UFMG com bolsas de produtividade de remuneração mais alta (1A), apenas 15 são mulheres, o que corresponde a 23,81% do total. Essa classificação destina-se a pesquisadores “que tenham mostrado excelência continuada na produção científica e na formação de recursos humanos e que liderem grupos de pesquisa consolidados”.

Uma em 56

Professora do Departamento de Matemática da UFMG desde 1983, Sônia Pinto de Carvalho admite que qualquer mulher que queira frequentar ambientes majoritariamente masculinos precisa perceber a sutileza de certos comportamentos desses grupos. “Existe uma maneira de ser em cada ambiente”, pondera. Ela diz que é comum, por exemplo, em comissões da área de exatas, o grupo escolher um homem para presidir os trabalhos e indicar a única mulher presente para assumir a tarefa de secretária. “Parece tão natural que a mulher exerça essa função que, ao se recusar, ela os assusta”, descreve.

As mulheres são minoria em quase todos os ambientes que lidam com matemática, ressalta Sônia Carvalho. Entre os 40 pesquisadores que compõem o corpo docente do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), só há uma mulher. Das 308 bolsas de produtividade do CNPq na área, em 2016, somente 7% (23) foram atribuídas a mulheres. O Departamento de Matemática da UFMG tinha, em julho de 2017, 13 mulheres (18%) entre 74 professores – apenas 8% dos docentes atuando na pós-graduação. “A matemática da universidade de Paris VII tem 12% de mulheres no corpo docente”, compara Sônia Carvalho.

A matemática defende a necessidade de um “olhar feminino” nas ciências exatas e sobre a tecnologia que está sendo criada cotidianamente. “O cinto de segurança dos carros corta o pescoço, porque os homens que o planejaram não se atentaram que era preciso pensar em outra ergometria”, exemplifica. Em sua opinião, “enquanto os meninos são criados para serem guerreiros, as meninas não podem sujar a roupa nem desmanchar o cabelo”. Talvez por isso, diz Sônia Carvalho, o mais importante prêmio na área de matemática, a medalha Fields, entregue a cada quatro anos desde 1936, alcançou “apenas uma mulher” em um universo de 56 pesquisadores, “e justamente uma iraniana” – a professora Maryam Mirzakhani, que morreu de câncer aos 40 anos, em julho de 2017.

Formada em Medicina Veterinária em 1985, a professora Zélia Lobato iniciou ainda na graduação suas atividades de investigação científica. “Na construção da minha vida na ciência tive como referência grandes pesquisadoras, nacionais e internacionais, que, em menor número do que os homens, conquistaram uma posição no mundo acadêmico. Não me lembro de situações de preconceito, mas de momentos de surpresa, mesmo no ambiente universitário, de pessoas que deparavam com uma mulher exercendo papel de cientista”, relata.

Professora titular do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva, Zélia Lobato ressalta o crescimento da presença feminina na área: na Escola de Veterinária da UFMG, por exemplo, dos alunos formados em 1977, apenas 10% eram mulheres. Em 2016, esse percentual foi de 67%. “Também o número de professoras vem aumentando, somos hoje 35% do quadro de docentes”, informa.

Em sua opinião, o preconceito contra a mulher é mais evidente na área rural. “Quando fazia estágio no campo, acompanhava o veterinário nas fazendas, e invariavelmente as mulheres que nos recebiam me chamavam para ficarmos conversando na sala, ‘enquanto os homens iam olhar as vacas’”, conta. “Não encarava isso como preconceito, mas como uma questão cultural que mostrava o tamanho da estrada que as veterinárias precisariam percorrer. E estão percorrendo. Muito mais rapidamente do que eu previa”, conclui Zélia Lobato. Que assim seja.

Agência de Notícias UFMG

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Assessoria de Imprensa da UFMG

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