Opinião

80 anos do Código de Processo Penal: não há o que comemorar​

Em artigo, Leonardo Marinho, da Faculdade de Direito, defende a reforma urgente do CPP, ‘cópia’ da legislação do regime fascista da Itália dos anos 1930​

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O Código de 1941 é "consectário ideológico da Constituição de 1937", de raiz autoritáriaIlustração: Sunça

O Código de Processo Penal completou 80 anos no último domingo, 3 de outubro. É sempre importante explicar que a legislação processual penal contém as regras que norteiam o sistema de justiça, regulando a investigação, a acusação, a defesa e o julgamento nas democracias modernas.

O enfrentamento da criminalidade sempre trouxe desafios para as diversas civilizações. Os sistemas de justiça variaram bastante ao longo da História, assim como os métodos empregados em cada época. Sócrates, por exemplo, foi acusado de corromper a juventude e de não acreditar nos deuses da cidade. Julgado por uma assembleia composta de 500 cidadãos atenienses, acabou condenado à pena de morte.

Na Idade Média, a justiça criminal sofreu uma mudança radical. Primeiro, os julgamentos foram substituídos por provas nada convencionais. Os acusados foram obrigados a segurar ferro em brasa ou a mergulhar a mão em um caldeirão com água fervente para aferir sua possível responsabilidade. A ausência de consequências graves simbolizava a intervenção divina em afirmação da inocência. Séculos depois, investigações de ofício começaram a produzir provas de bruxaria e heresia, extraindo confissões em violentas sessões de tortura.

A brutalidade da justiça criminal medieval entrou na pauta das reformas defendidas pelo movimento das luzes. A partir de então, a sociedade começou a tomar consciência da necessidade de construir um marco civilizatório para o julgamento do caso penal. Surgiram as premissas da presunção de inocência, do juiz natural, do direito de defesa, da não autoincriminação, da prova produzida por meio lícito, das decisões fundamentadas, do direito ao recurso. Nas sociedades democráticas, a reação ao delito deve ocorrer, inexoravelmente, pela via do devido processo legal.

Necessário esclarecer que, no século 21, o devido processo legal não corresponde a uma construção interna de cada Estado, como reflexo de sua consciência evolutiva, mas a uma plataforma concebida conjuntamente pela comunidade internacional, por meio de tratados que regulamentam os direitos elementares da pessoa acusada. 

O Brasil ratificou três desses tratados (Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto Internacional Civil dos Direitos Políticos e Convenção de Roma) e aderiu ao marco do julgamento humanitário. A criminalidade deve ser combatida, mas, vale insistir, a missão só pode ser cumprida pela via única do devido processo legal.

Não temos como explicar por que uma legislação de índole fascista, que se mostrou servil em períodos autoritários da nossa História, continuou em vigor após a redemocratização, sem causar mal-estar em pessoas compromissadas com o Estado de Direito.

A nossa lei processual penal suscita algumas reflexões necessárias neste mês de outubro, quando completa oito décadas de vigência. O Código de 1941 é consectário ideológico da Constituição de 1937. O texto constitucional do Estado Novo dissolveu o Poder Legislativo da União e dos estados e instituiu um Estado ditatorial e intervencionista, concentrado no Poder Executivo.

A Constituição de 1937 estabeleceu uma inadmissível hierarquia entre os direitos fundamentais, segundo a qual a necessidade da defesa, do bem-estar, da paz e da ordem coletiva imporia limites às garantias e aos direitos individuais dos cidadãos. Reproduzindo essa mentalidade manifestamente repressiva, o Código de Processo Penal de 1941 promete reação célere e enérgica ao delito, enquanto tripudia das garantias processuais, por ele classificadas como “catálogo de favores”, “pseudodireitos individuais”, “franquias” e “imunidades”. 

O desalinhamento da legislação processual penal de Getúlio Vargas com a Constituição de 1988 precisa ser denunciado. Todos precisam saber que o Código do Estado Novo representa uma cópia do Projeto Rocco, que foi apresentado na Itália, em 1930, para atender ao anseio de recrudescimento político. Os fascistas usaram politicamente o processo penal para perseguir dissidentes.

Ora, a Constituição cidadã restabeleceu a ordem jurídica democrática, fundada na dignidade da pessoa humana e no compromisso com os direitos fundamentais. Não temos como explicar por que uma legislação de índole fascista, que se mostrou servil em períodos autoritários da nossa História, continuou em vigor após a redemocratização, sem causar mal-estar em pessoas compromissadas com o Estado de Direito.

Definitivamente, precisa haver alguma diferença entre investigar, acusar, defender e julgar em períodos totalitários e em períodos democráticos.
Esta reflexão, que vem tardiamente, não poderia encontrar momento tão oportuno. Que outubro seja o mês da consciência democrática e nos faça refletir sobre a necessidade de promover, com máxima urgência, a reforma da nossa legislação de processo penal.

Leonardo Augusto Marinho Marques / chefe do Departamento de Direito e Processo Penal da Faculdade de Direito de UFMG. Doutor em Ciências Penais pela mesma instituição