Pesquisa e Inovação

Além da performance: pesquisa analisa reconhecimento e politização de 'drag queens'

Dissertação defendida na pós-graduação em Administração da Face investiga a perspectiva cotidiana dessas artistas em Belo Horizonte

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Distanciamento social imposto pela pandemia prejudicou o trabalho das 'drag queens'Foto: Alejandro Cartagena MX | Unsplash+

Ainda no curso de graduação em Administração, o pesquisador João Henrique Delgado começou a perceber que pessoas da comunidade LGBT+ eram valorizadas apenas como ativo econômico. Incomodado com esse viés, Delgado buscou, desde o seu trabalho de conclusão de curso (focado em pessoas vivendo com HIV), transcender o entendimento de que essas pessoas deveriam ser incluídas pelas organizações apenas porque isso fazia bem aos negócios – dimensão traduzida pela expressão pink money – e não porque a contemporaneidade implica novas exigências e direitos sociais. 

De acordo com o pesquisador, que defendeu no fim de maio sua dissertação de mestrado na Faculdade de Ciências Econômicas, a diversidade deve ser vista pelo viés social. “Se pensamos em ‘como incluir a diversidade?’, o que fica escondido é ‘o que exclui essas pessoas?’. As organizações devem pôr foco em uma perspectiva politicamente engajada. As pessoas LGBT+ e demais minorias são excluídas porque sofrem violências em suas múltiplas manifestações. Não basta contratar uma pessoa LGBT+, é preciso oferecer condições de existência e se responsabilizar pelas violências que podem ocorrer dentro das organizações”, defende Delgado. 

Sob tal prisma, João Delgado aprofunda: “Não é suficiente pensar que deveríamos ser ‘incluídos’ [ele se identifica como homem gay] simplesmente porque somos muito bons no que fazemos. E aí nos vemos diante dessa recorrente sensação de que precisamos nos provar o tempo todo, de que a diversidade só é boa quando é economicamente atrativa. Mas ela também é boa sob a perspectiva social”, justifica.

Contexto da pesquisa
Delgado percebeu que o contexto de distanciamento social imposto pela pandemia de covid-19 prejudicaria, em especial, as artistas drag queens, que, em geral, performavam em boates e casas de shows, fechadas devido às restrições sanitárias impostas pela pandemia. “Estou falando de homens muito afeminados, mulheres trans travestis, ou seja, pessoas não binárias, tratadas como abjetas. E isso me instigou bastante a aprofundar e a complexificar o problema sob a perspectiva delas próprias", justifica.

Com base nessa premissa, o pesquisador realizou levantamento bibliográfico e traçou procedimentos metodológicos para identificar como as drag queens de Belo Horizonte percebiam suas vivências. O estudo buscou responder ao seguinte problema: “Como se dão as disputas em torno do reconhecimento e da politização da vida sob a perspectiva de pessoas que performam drag queens em Belo Horizonte?”.

A dissertação recorreu à teoria queer (entendimento dos gêneros e como construção social) e buscou ressignificar a noção de falha, compreendida como defeito que se pretende reparar. No contexto do estudo, o corpo drag é visto, socialmente, como um corpo que falha em performar gêneros normativos e encontra formas alternativas de ser, estar e se relacionar no cotidiano.

Preconceito com o objeto de estudo
Além da discriminação sofrida pelas artistas, em particular, e também por toda a comunidade LGBT+, o pesquisador também relata ter vivenciado alguns preconceitos acadêmicos e científicos entre os seus pares devido ao próprio tema do estudo. “A Administração ainda é uma ciência muito tradicional, que legitima o saber por meio dos dados e dos números. Quando eu dizia que pretendia focar na história e na experiência das pessoas LGBT+, sentia que faltava uma compreensão dos colegas de academia em relação ao valor da pesquisa”, detalha Delgado.

De acordo com o mestre em Administração, assim como as drags se esforçaram para sobreviver financeiramente durante a pandemia, ele se empenhou em provar a validade do seu estudo. “Até mesmo para fugir desse preconceito, senti que precisava estudar em dobro. Quando faço uma pesquisa que, aos olhos da sociedade, não tem valor, quando estou falando de pessoas estigmatizadas, preciso sempre provar por qual motivo aquilo é relevante, por que é importante tratar dessas vidas.”

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João Delgado: 'drags' como protagonistasFoto: Arquivo pessoal

‘Divas’
João Delgado entrevistou oito drag queens que se apresentavam na noite belo-horizontina há mais de uma década para entender como elas vivenciavam o próprio cotidiano. Para preservar sua identidade, elas foram nomeadas com pseudônimos inspirados em nomes de celebridades femininas, as chamadas “divas” da comunidade LGBT+: (Christina) Aguilera, Nazaré, Bianca, Diana, Rihanna, Narcisa, Celine e Rocks.

Em sua conclusão central, o pesquisador afirma que o ser-estar-performar drag queen não pode ser compreendido como prática com início (montar-se, ou seja, vestir-se de mulher de maneira considerada extravagante), meio (performar no palco) e fim (desmontar-se), mas como posicionamento político diante da vida. Com base nas entrevistas e em observações diretas feitas no trabalho de campo, os principais achados dizem respeito às três categorias de análise criadas com base nas narrativas das entrevistadas: 1) as noções de normatividade e profissionalização drag, que desenvolvem estilos mais valorizados segundo a lógica de mercado; 2) a tensão entre a visibilidade do corpo drag e a violência contra corpos dissidentes; e 3) a noção de modos de vida drag, que são compreendidos como forma de posicionamento político e não se limitam ao período da montação (caracterização da personagem das performances). 

Para Delgado, ao se considerar essa perspectiva política, a drag queen emerge como protagonista que disputa a cena local e abre possibilidades de um futuro para além da heteronormatividade. “Com os modos de vida, podemos pensar em outras gramáticas da vida, que não a da administração maior (planejar, gerir, controlar), mas da administração menor (tecer, gestar, cuidar), que se dá na força insurgente daquilo que se pretende de menor valor”, finaliza o autor.

Além das conclusões intrínsecas de sua investigação, João Delgado avalia que é fundamental defender academicamente estudos sobre minorias e grupos marginalizados: “Temos que subverter essa lógica e pensar: como eu faço esses processos, como eu faço essas discussões? Essas pessoas, no dia a dia delas, sofrem várias barreiras, várias sanções, têm várias dificuldades que muitas vezes desconhecemos. As descobertas científicas contribuem para a sociedade encontrar formas de diminuir essas barreiras”, reflete o autor do trabalho.

‘Dando close’
Se na comunidade drag a expressão “dando close” é usada, por vezes, para expressar a presença exitosa de uma pessoa em algum espaço, a pesquisa conduzida por João Delgado marcou presença nas mídias da UFMG. No dia 28, Dia do Orgulho LGBT+, a Rádio UFMG Educativa veiculou matéria sobre o estudo dos modos de vida drag. Nesta sexta, dia 30, encerrando o mês do Orgulho LGBTQIA+, as redes sociais da UFMG (Instagram,Twitter e Facebook) também focalizaram o trabalho de João Delgado.

Pesquisa: Corpos que fal(h)am: reconhecimento e politização da vida sob a perspectiva cotidiana de drag queens de Belo Horizonte
Autor: João Henrique Machado Delgado
Orientador: Alexandre de Pádua Carrieri 
Unidade: Centro de Pesquisa e Pós-graduação em Administração da Face
Linha de pesquisa: Estudos organizacionais, trabalho e pessoas
Defesa: 30 e maio de 2023

Ruleandson do Carmo