Opinião

[Opinião] Em defesa da universidade pública e plural

Para o professor Rodrigo Ednilson, o desligamento e a suspensão de estudantes que fraudaram o sistema de cotas favorecem as ações afirmativas e o avanço do projeto de uma UFMG mais inclusiva

Reunião para formação de pessoas que atuaram em comissão complementar à autodeclaração realizada em 2019, na Sala de Sessões do Conselho Universitário
Reunião para formação de pessoas que atuaram em comissão complementar à autodeclaração realizada em 2019, na Sala de Sessões do Conselho Universitário Ana Rita Araújo | UFMG

Considero histórica a decisão do Conselho Universitário, aprovada por unanimidade no último dia 25, que acolheu a recomendação da comissão disciplinar responsável por investigar eventuais responsabilidades no uso indevido de cotas na UFMG. Seu relatório propôs, após longo período de investigação marcado por ampla defesa, o desligamento de 22 estudantes e a suspensão de outros sete pelo prazo de um semestre letivo. Embora dirigida aos estudantes, creio que a decisão do nosso órgão máximo de deliberação toca em aspectos mais amplos e cruciais do projeto de universidade em curso na UFMG. Tentarei discutir esses aspectos nas próximas linhas.

Ao longo da primeira década deste século, a UFMG participou ativamente dos debates nacionais e locais acerca das políticas de ações afirmativas, pensadas como forma de minimizar as desigualdades no acesso da população negra ao ensino superior no Brasil. Em 2009, a UFMG implementou a política de bônus que consistia em um acréscimo de 10% nas notas das provas dos candidatos que haviam cursado os sete últimos anos da educação básica em escola pública e mais 5% para aqueles que, na mesma condição, se autodeclarassem negros (pretos e pardos). Embora só tenha aderido às cotas em 2013, por força de lei federal, a UFMG, desde 2009, já exigia dos(as) candidatos(as) uma autodeclaração racial para concorrer a uma das vagas reservadas. Apesar disso, só a partir de 2017 emergiu um número expressivo de denúncias de fraudes nas autodeclarações. Penso que tal movimento é resultado, mesmo que indireto, da efetividade da política de reservas de vagas para estudantes negros, já que o crescimento expressivo desse grupo na Universidade, associado à formação de uma variedade de coletivos no interior da UFMG, tem possibilitado a articulação e a apresentação de denúncias formais.

Como resultado dessas mobilizações e dos diálogos institucionais que já ocorriam no período, a UFMG implementou, nos anos de 2017 e de 2019, mecanismos complementares à autodeclaração racial. Com os objetivos de aumentar os custos de autodeclarações falsas, conduzir os candidatos a reflexões mais profundas sobre sua identificação racial e coibir a ocupação indevida de vagas por candidatos mal (ou equivocadamente) informados, a UFMG incorporou, na graduação e na pós-graduação, as cartas consubstanciadas e o procedimento de heteroidentificação racial antes da efetivação das matrículas.

Sem desconsiderar os muitos aspectos relevantes dos trabalhos da comissão de sindicância, que avaliou a pertinência das denúncias, e da comissão do Processo Administrativo Disciplinar (PAD), responsável por apurar as infrações funcionais e recomendar a aplicação das penalidades, gostaria de limitar as discussões deste artigo a alguns aspectos conceituais da heteroidentificação, que podem nos ajudar a melhor compreender a recomendação feita pela comissão de PAD e acolhida pelo Conselho Universitário.

Os trabalhos da sindicância e do PAD foram orientados por noções centrais do campo de estudo das relações raciais no Brasil e, por isso, converteram-se nos três eixos norteadores das atuações das comissões de heteroidentificação racial em atuação na UFMG.

"A heteroidentificação, usada em nosso cotidiano para classificar o menino 'moreninho' que entrega pizza ou a menina 'branquinha' que atua na novela, quando aplicada a processos institucionais de ingresso no ensino superior ou no funcionalismo público, precisa obedecer a critérios de legalidade, impessoalidade, imparcialidade, moralidade, publicidade e eficiência."

O primeiro eixo refere-se ao caráter complementar da heteroidentificação, o que nos possibilita aproximar de sua definição. O procedimento baseia-se na identificação externa das características fenotípicas de terceiros, podendo ser realizado por uma ou por um conjunto de pessoas. A heteroidentificação, usada em nosso cotidiano para classificar o menino “moreninho” que entrega pizza ou a menina "branquinha" que atua na novela, quando aplicada a processos institucionais de ingresso no ensino superior ou no funcionalismo público, precisa obedecer a critérios de legalidade, impessoalidade, imparcialidade, moralidade, publicidade e eficiência. Assim como definiu o ministro do STF, Ricardo Lewandowski, relator do processo que julgou a constitucionalidade das políticas de cotas em 2011, a utilização de bancas de heteroidentificação é um adequado procedimento complementar à autodeclaração desde que respeite as seguintes condições: (a) a classificação pelo comitê deve ser feita posteriormente à autoidentificação do candidato como negro (preto ou pardo) para coibir a predominância de uma classificação por terceiros; (b) o julgamento deve ser realizado por fenótipo e não por ascendência; (c) o comitê deve ser composto levando-se em consideração a diversidade de raça, de classe econômica, de orientação sexual e de gênero, e seus integrantes devem cumprir mandatos curtos.

O segundo eixo ao qual me referi diz respeito, justamente, à definição do público-alvo das políticas afirmativas, o que nos remete à sua própria finalidade: combater o racismo e as desigualdades raciais, sobretudo no acesso da população negra ao ensino superior brasileiro. Nesse ponto, vale a pena retomar as reflexões de Oracy Nogueira, que, na década de 1950, concluiu que no Brasil o que vigorava era o racismo de marca, mais efetivo quanto maior o acúmulo de melanina no corpo do indivíduo. Segundo ele, esse nosso racismo incidiria, de modo direto, nos corpos dos sujeitos e não na ancestralidade, o que implica dizer que um sujeito fenotipicamente branco, ainda que com ancestrais negros (pai ou mãe, avós etc.) e uma identificação genuína com a cultura negra, teria poucas chances de se tornar alvo do racismo.

O terceiro eixo refere-se aos critérios utilizados pelas comissões para “ler” os sujeitos e identificá-los no grupo das pessoas negras ou no grupo das pessoas não negras. Esse eixo, aliás, guarda estreita relação com o segundo, já que é justamente no corpo que podemos identificar o conjunto das características fenotípicas (cor da pele, tipo de cabelo, formato de lábios e nariz etc.). Não se trata, portanto, de analisar uma ou outra característica isoladamente ou realizar uma hierarquização das características, definindo que o cabelo, por exemplo, tem prevalência sobre o formato dos lábios. Trata-se apenas de definir se tal candidato(a), com base na leitura do conjunto de características fenotípicas, é lido como pessoa negra ou não.

“Segundo ele [Oracy Nogueira], esse nosso racismo incidiria, de modo direto, nos corpos dos sujeitos e não na ancestralidade, o que implica dizer que um sujeito fenotipicamente branco, ainda que com ancestrais negros (pai ou mãe, avós etc.) e uma identificação genuína com a cultura negra, teria poucas chances de se tornar alvo do racismo.”

Por fim, gostaria de enfatizar que, além do evidente papel de controle e aprimoramento da política de reserva de vagas, entendo que os procedimentos de heteroidentificação racial, aplicados no momento dos registros acadêmicos ou no decorrer de processos administrativos disciplinares, cumprem importante papel no debate sobre as identidades raciais do brasileiro e do Brasil. Como bem afirmou um dos conselheiros, em momento que antecedeu a votação do Conselho Universitário, a decisão histórica proferida no dia 25 de fevereiro não é, necessariamente, contrária aos estudantes investigados, mas, sobretudo, uma decisão em favor da política de ações afirmativas e de um projeto de universidade – e de sociedade – mais democrático e plural.

Vida longa às ações afirmativas.

(Rodrigo Ednilson de Jesus / Professor da Faculdade de Educação e presidente da Comissão Permanente de Ações Afirmativas e Inclusão da UFMG)