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‘Assumo o compromisso de lutar pelos valores desta Casa’, diz Eugenio Zaffaroni, Doutor Honoris Causa da UFMG

Jurista argentino com trajetória dedicada aos direitos humanos foi agraciado em cerimônia realizada ontem, na Faculdade de Direito

Eugenio Zaffaroni:
Eugenio Zaffaroni: "direitos humanos vão bem no âmbito normativo, mas a realidade mostra sérios problemas" Foto: Foca Lisboa | UFMG

“Por essa tradição universitária milenar de concessão do doutorado ‘honoris causa’, o agraciado compromete-se a lutar pelos princípios e valores da instituição. Aceitar esse título significa para mim assumir esse compromisso com a UFMG. Agradeço imensamente a confiança que vocês depositam em mim.” Assim o jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni encerrou, na noite de ontem (terça, 17), sua fala durante a cerimônia, na Faculdade de Direito, em que recebeu o título de Doutor Honoris Causa da UFMG.

Autoridades, juristas, professores e estudantes lotaram o auditório da Faculdade para homenagear Zaffaroni, que foi ministro da Suprema Corte Argentina, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos e é professor emérito da Universidade de Buenos Aires. “Em nome do Conselho Universitário da UFMG e das comunidades jurídica e acadêmica mineiras, manifesto gratidão por tudo que Eugenio Zaffaroni representa para o direito, com a marca da defesa dos direitos humanos e de questionamentos que vão na contramão do que defende a maioria”, afirmou o diretor da Faculdade de Direito, professor Hermes Vilchez Guerrero, ao acolher o argentino.

Leonardo Marinho:
Leonardo Marinho: humanização do direito penalFoto: Foca Lisboa | UFMG

Aprovada no Conselho Universitário por unanimidade, a proposta da homenagem foi apresentada pela Congregação da Faculdade, por sugestão do Departamento de Direito e Processo Penal. Chefe do departamento, o professor Leonardo Marinho saudou Eugenio Zaffaroni. “A contribuição do professor Zaffaroni à formação de todos os penalistas latino-americanos é inestimável. Compreendemos em seus livros que ‘reduzir os níveis de violência’ do sistema punitivo ‘significa salvar vidas’. E, acrescento, salvar corpos, porque quando não matou, a lei penal mutilou em implacável tortura; preservar dignidades, porque a lei penal sempre condenou seres humanos à infâmia”, disse Marinho.

Segundo o professor da UFMG, a tradição de apreço à liberdade transforma os mineiros em “verdadeiros peregrinos em busca das penas perdidas”. “Faltava-nos, entretanto, uma construção teórica mais elaborada, que nos permitisse acreditar na legitimação do sistema penal. Foi com sua proposta [dirigindo-se a Zaffaroni] de humanização do direito penal que conseguimos canalizar nosso ‘louco desejo de liberdade’ – lembrando as palavras do frade José Carlos Penaforte, sobre Tiradentes – e passamos a cumprir a nossa missão como penalistas.”   

Reagir ao colonialismo
Falando de improviso, Eugenio Zaffaroni destacou que o Brasil teve e tem grandes penalistas e disse estar ciente de que estava na “terra da Inconfidência Mineira, um dos primeiros gritos de liberdade na nossa América”, no século 18, ao lado de movimentos de resistência no México, na Bolívia e na Colômbia. Ele lembrou, entretanto, em tom crítico, que as revoluções francesa e norte-americana, da mesma época, sempre foram mais presentes. “Elas introduziram os conceitos de direitos humanos, dignidade da pessoa humana, que são importantes, mas serviram apenas pro Norte, não para o Sul. Esses países foram empoderados graças a matérias-primas roubadas de nós e a 60 milhões de mortos entre povos originários e 20 milhões de africanos escravizados.”

De acordo com Zaffaroni, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, tem “o valor de uma declaração de boa vontade, não mais”. Tratados como a Convenção de Roma, ele lembrou, demoraram décadas a ser reconhecidos por causa do colonialismo então ainda praticado na África e na Indochina, por exemplo.

O jurista argentino ressaltou que os direitos humanos vão bem no âmbito normativo, mas a realidade mostra sérios problemas, como as enormes desigualdades. “A América é mais desigual que a África, que é mais pobre, e alguns de nossos países têm os índices de homicídios mais altos do mundo”, enfatizou. “O poder nem sequer pensa no suicídio de toda a humanidade e continua destruindo o meio ambiente e produzindo cadáveres de colonizados.”

“Temos que revalorar nossas histórias, nossos gritos, reagir ao colonialismo para o qual fomos longamente treinados e voltar a pensar tudo desde o Sul”, afirmou. “Ainda temos um caminho difícil a percorrer, e devemos seguir na luta pelo direito”.

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Sandra Goulart: "lucidez em tempos desafiadores"Foto: Foca Lisboa | UFMG

Direitos humanos e a causa da justiça
A reitora Sandra Goulart Almeida salientou que a obra de Eugenio Zaffaroni constitui “ruptura notável” com os paradigmas sedimentados do pensamento jurídico-penal. Ela mencionou uma série de obras fundamentais do professor e lembrou que, para Zaffaroni, a função do direito penal é conter o poder punitivo. “Esse poder, ele escreveu, ‘não é seletivo do poder jurídico, e, sim, um fato político, exercido por suas agências, especialmente a polícia’”, citou a reitora. Ela ainda destacou a advertência do argentino de que “a transformação social não advém do Direito, que deve ser, sim, um garantidor da democracia e dos espaços de dinâmicas sociais, para que os cidadãos sejam livres e possam desempenhar papel de liderança na política”.

Sandra ressaltou que o novo Doutor Honoris Causa da UFMG não é celebrado apenas por suas contribuições acadêmicas e práticas, mas também por “sua defesa incansável dos direitos humanos e da causa da justiça em sua vertente civilizatória, depositária da esperança de um futuro digno de ser sonhado por todos e todas que lutam pela democracia”.

Ela destacou o talento e a coragem de Zaffaroni para defender causas que são sensíveis também à UFMG, em uma época na qual “a humanidade ainda se defronta com desigualdade estrutural que se alimenta dos medos para conservar hierarquias sustentadas precisamente na negação de direitos”. Falando diretamente ao professor e jurista argentino, Sandra completou: “Obrigada, professor Zafaroni, por ser, nestes tempos desafiadores, por vezes tristes e turbulentos, essa lucidez que nos guia, que não nos deixa esquecer dos nossos compromissos como pessoas, professores, juristas e também como instituições, que nos enche de esperança em um mundo cada vez melhor, mais equânime, com direitos e justiça social.”

Hermes Guerrero (à direita), com Zaffaroni e a reitora Sandra Goulart
Hermes Guerrero (à direita), com Zaffaroni e a reitora Sandra Goulart Foto: Foca Lisboa | UFMG

Culpabilidade por vulnerabilidade
Eugenio Raúl Zaffaroni foi ministro da Suprema Corte Argentina de 2003 a 2014 e juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 2015 a 2022. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa de cerca de 50 universidades. Ele é vice-presidente da Associação Internacional de Direito Penal.

O jurista argentino é um dos principais formuladores de teses relacionadas à culpabilidade por vulnerabilidade. Segundo Zaffaroni, na América Latina há um severo grau de vulnerabilidade pessoal da população carente diante do sistema social e punitivo, o que justifica uma mudança no paradigma dogmático. Em sua visão, há uma culpabilidade que deve ser aferida pelo quão vulnerável é o indivíduo, a fim de reduzir o grau de incidência da norma penal e da resposta punitiva subsequente.

Em seus 96 anos, a UFMG aprovou a concessão do título de Doutor Honoris Causa a 24 personalidades, série que começou em 1928, um ano após sua fundação, com a homenagem ao jurista José Xavier Carvalho de Mendonça. Entre outros agraciados, estão o ex-presidente do Brasil Juscelino Kubitschek (1960), o escritor José Saramago (1999), a física americana Mildred Dresselhaus (2012) e a cantora lírica Maria Lúcia Godoy (2016). 

Solenidade reuniu autoridades, juristas, professores e estudantes
Solenidade reuniu autoridades, juristas, professores e estudantes Foto: Foca Lisboa | UFMG

Itamar Rigueira Jr.