Institucional

Soberania é prática cotidiana e não conceito abstrato, defende Patrus Ananias em painel

Evento na Faculdade de Direito reuniu, além do deputado federal, pesquisadores e docentes da UFMG em debate sobre democracia, educação e desafios geopolíticos enfrentados pelo Brasil

Painel proposto pelo deputado federal Patrus Ananias reuniu professores e pesquisadores da UFMG
Painel proposto pelo deputado federal Patrus Ananias reuniu professores e pesquisadores da UFMG Foto: Raphaella Dias | UFMG

A soberania de um país só se concretiza quando o Estado garante dignidade e acesso a direitos básicos para toda a população. A afirmação foi feita pelo deputado federal Patrus Ananias na abertura do painel Soberania nacional, democracia e educação, realizado nesta quinta-feira (2) na Faculdade de Direito da UFMG. O encontro reuniu dirigentes, docentes e pesquisadores para debater os recentes ataques à autonomia brasileira nas relações internacionais e refletir sobre o papel das universidades na defesa de um projeto nacional.

Egresso da Faculdade de Direito, Patrus rememorou sua formação no período da ditadura militar, aludindo à resistência estudantil contra o AI-5 e relacionando sua trajetória política ao compromisso com a democracia e com os direitos humanos. Em sua exposição, o parlamentar frisou que a soberania deve ser entendida como prática cotidiana e não apenas como conceito abstrato. “A prioridade primeira de um país soberano é cuidar do seu povo: assegurar alimentação, saúde, educação, trabalho digno e moradia. Só assim se garante a dignidade da pessoa humana”, destacou.

O ex-prefeito de Belo Horizonte e ex-ministro do Desenvolvimento Social também defendeu a construção de uma identidade nacional inclusiva, alegando que o Brasil, em comparação com outras nações, é um país jovem, ainda em processo de afirmação cultural, social e política. Para ele, a soberania atravessa o enfrentamento das desigualdades históricas, relacionadas à escravidão, ao latifúndio e ao coronelismo. O deputado enfatizou a importância de políticas públicas consistentes e transparentes e sugeriu que “quem mantém o país são os cidadãos que pagam impostos – o orçamento público, portanto, precisa ser aberto e participativo”.

O parlamentar chamou a atenção ainda para o desafio atinente à independência econômica e conclamou que o Brasil agregue valor às suas riquezas minerais e agrícolas. “Não podemos continuar exportando matéria-prima para, depois, comprar de volta produtos industrializados a preços muito mais altos. A soberania exige que nossas riquezas sejam transformadas aqui, gerando emprego e renda para o povo brasileiro”, disse.

Patrus Ananias:
Patrus Ananias: soberania passa pelo enfrentamento das desigualdades históricasFoto: Raphaella Dias | UFMG

Outro ponto frisado por Patrus foi a centralidade da educação como política estratégica para um projeto nacional soberano. Ele recordou sua atuação no Congresso na aprovação do Sistema Nacional de Educação e defendeu o ensino da história do Brasil seja tratado como prioridade, capaz de fortalecer a identidade coletiva. Para ele, a educação pública, desde a creche até a pós-graduação, deve ser tratada como direito fundamental e como motor de desenvolvimento tecnológico, científico e cultural.

Soberania e dimensão digital
A pesquisadora Anna Luiza Coli, vinculada ao Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (Ieat), suscitou a reflexão sobre a “centralidade inesperada” que o tema da soberania adquiriu no cenário contemporâneo. Para ela, a promessa de superação de conflitos entre Estados, alimentada pelo multilateralismo do pós-Guerra Fria e pelo fortalecimento de instituições como a ONU, deu lugar a uma nova realidade marcada pela interdependência tecnológica.

Segundo Anna Coli, as tecnologias deixaram de ser instrumentos neutros e se tornaram infraestruturas vitais, controladas por grandes corporações que acumulam poder comparável ao de Estados nacionais. “As big techs não são apenas atores econômicos, mas forças políticas transnacionais capazes de condicionar a democracia”, avaliou. Ela alertou para o fato de que a concentração de dados pessoais em mãos privadas gera um poder de manipulação social sem precedentes, baseado em algoritmos que moldam preferências, radicalizam opiniões e fragilizam o espaço público.

Para a pesquisadora, a soberania no século 21 não pode mais ser discutida sem incorporar a dimensão digital – regular as plataformas não é apenas proteger a privacidade individual, mas limitar a lógica de captura ilimitada de dados que sustenta o modelo de negócios dessas empresas. Anna Coli lembrou que, no Brasil, gigantes como Google e Meta atuaram ativamente contra o PL das Fake News, mobilizando campanhas de pressão sobre parlamentares e usuários. “Não se trata de paranoia, mas de reconhecer que há uma guerra declarada dos interesses corporativos contra a sobrevivência da democracia”, advertiu.

Ao citar estudos recentes da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, e declarações de investidores de tecnologia que veem a democracia como obstáculo, Anna Coli afirmou que defender a soberania implica proteger instituições capazes de impor limites às corporações digitais. “Sem esse esforço, corremos o risco de entregar às plataformas privadas o poder de arbitrar o convívio social, abrindo mão do futuro democrático”, concluiu.

Ana Coli:
Anna Coli: guerra declarada entre interesses corporativos e a sobrevivência da democraciaFoto: Raphaella Dias

Dimensões distintas
O professor de Ciência Política Leonardo Avritzer, coordenador da Cátedra Darcy Ribeiro na UFMG, partiu de uma distinção clássica entre força e soberania para refletir sobre o momento atual. Inspirado em Thomas Hobbes e Hannah Arendt, lembrou que a soberania não se reduz ao uso da força, mas depende do consentimento dos cidadãos. Evocando as revoluções do Leste Europeu, o docente reiterou que os regimes caíram na região quando a população deixou de temer a violência estatal. “A política começa justamente quando o uso da força deixa de ser o elemento central do destino dos cidadãos”, disse.

Avritzer salientou ainda que o conceito de soberania assume dimensões distintas nos planos interno e internacional. No âmbito nacional, ela se legitima por meio da representação e do voto. No cenário externo, envolve o direito de cada país determinar autonomamente seu destino, sem coerção de potências hegemônicas. Nesse sentido, o professor avaliou que o mundo vive um período de transição na geopolítica internacional, com o esgotamento do modelo do pós-guerra, marcado pelo equilíbrio precário entre grandes potências.

O cientista político também relacionou a conjuntura global à experiência recente da democracia brasileira. Ele classificou setembro de 2025 como “um mês que ficará registrado na história”, já que no período ocorreram o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de militares de alta patente por tentativa de golpe de Estado, os embates legislativos que tensionaram a Câmara, a reação popular contra a impunidade e pela efetividade da representação política e, por fim, o discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Assembleia Geral da ONU. Para Avritzer, o impacto internacional do discurso se deveu à demonstração de o Brasil tem capacidade de defender sua democracia internamente, em contraste com a fragilidade atual dos Estados Unidos nesse campo.

Ao abordar a soberania externa, Avritzer criticou o uso seletivo de instrumentos internacionais, como a Lei Magnitsky, aplicada contra ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo ele, o apelo a esses instrumentos ilustra o risco de potências empregarem mecanismos jurídicos como armas políticas. “A soberania internacional, para existir, precisa ser igualitária e democrática. Caso contrário, converte-se em instrumento de coerção”, alertou.

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Avritzer: soberania como consentimento dos cidadãosFoto: Raphaella Dias | UFMG

Letramento midiático
A defesa da democracia requer o combate à desinformação, enfatizou a professora Geane Alzamora, do Departamento de Comunicação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich). Uma das coordenadoras do Programa UFMG de Formação Cidadã e Defesa da Democracia, ela destacou que a iniciativa leva  a Universidade à linha de frente da construção de políticas públicas para o fortalecimento da cidadania, com foco sobretudo no letramento digital e na promoção de uma cultura informacional mais confiável e plural.

Geane lembrou que o cenário de desinformação se tornou ainda mais complexo com a popularização da inteligência artificial generativa, que amplia as possibilidades de manipulação e dificulta a distinção entre informação e falsificação. Nesse sentido, destacou a urgência de refletir sobre a soberania digital. “O Sul Global precisa construir estratégias próprias frente ao domínio das big techs do Norte”, afirmou, defendendo que só ecossistemas informacionais mais saudáveis e inclusivos podem garantir que as democracias resistam às novas formas de manipulação. “Se em 2018 falávamos em como as democracias morrem, talvez seja hora de pensar em como elas resistem.”

O diretor da Faculdade de Direito, Hermes Guerrero, ressaltou o caráter mutável e flexível da soberania, conceito que, desde o surgimento do Estado moderno, é disputado e reinterpretado conforme os interesses em jogo. Ele recuperou episódios históricos e simbólicos relacionados à soberania no Brasil, citando a campanha O petróleo é nosso, na década de 1950, e lembrou a mobilização de gerações de juristas e militantes em defesa de recursos estratégicos. Nesse ponto, vinculou o debate atual às tradições da Faculdade de Direito da UFMG, que, ao longo do século 20, formou quadros políticos centrais para a história de Minas Gerais e do Brasil.

Sandra Goulart:
Sandra Goulart: UFMG como projeto de soberaniaFoto: Raphaella Dias | UFMG

Encerrando a mesa, a reitora Sandra Regina Goulart Almeida ponderou que a soberania significa, antes de tudo, independência e autonomia – no sentido inverso da submissão e da dependência que marcaram a história colonial do Brasil. Segundo ela, a UFMG nasceu como projeto de soberania, concretizando o sonho dos inconfidentes de criar, em solo mineiro, uma universidade capaz de produzir pensamento crítico e contribuir para o desenvolvimento nacional.

A reitora da UFMG destacou que o fortalecimento da soberania exige a valorização das universidades e avaliou que a mobilização popular tem sido decisiva para assegurar avanços diversos, como a taxação das pessoas de alta renda, que acaba de ser aprovada na Câmara dos Deputados. “É no coletivo que reside a força necessária para defender democracia e soberania", sentenciou.

Matheus Espíndola