Combate à pandemia nas penitenciárias depende de medidas que reduzam a superpopulação
Pesquisadoras do Crisp-UFMG afirmam, por exemplo, que grande parte das mulheres presas poderia estar em casa, mas esse direito não é respeitado
Distanciamento entre as pessoas e higienização frequente das mãos são duas recomendações fundamentais para o combate à disseminação do novo coronavírus. Pois bem: alguém acha possível imaginar que elas estejam sendo minimamente seguidas nos presídios brasileiros? O cenário de celas superlotadas e quase absoluta falta de acesso a itens de higiene pessoal básica e atendimento à saúde está muito longe de ser propício à prevenção da Covid-19.
As unidades prisionais abrigam hoje, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), 745.746 pessoas, e o órgão registra 23 mortes causadas pela doença, 603 casos confirmados e 376 suspeitos. Foram feitos 2.323 testes para detecção do novo coronavírus.
Pesquisadoras do Centro de Estudos sobre Criminalidade e Segurança Pública (Crisp), da UFMG, que têm investigado a situação do sistema prisional no país e, particularmente, em Minas Gerais, afirmam que o problema poderia estar atenuado se as prisões abrigassem menos presos provisórios, que são aqueles que esperam julgamento, e se a progressão de regime (fechado para semiaberto, por exemplo) fosse acelerada. Em Minas Gerais, mais da metade das mulheres presas aguardam julgamentos.
Como lembra a socióloga Luana Hordones, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou, em março último, documento em que recomenda a substituição de prisões provisórias por domiciliares, com prioridade para alguns grupos como mulheres gestantes, lactantes, mães e responsáveis por crianças de até 12 anos de idade. “Essa recomendação é fundamental, e nem mesmo é algo inédito. Lei federal de 2016 já determinava que gestantes e mulheres com filhos de até 12 anos, sem julgamento, aguardassem a decisão da justiça em prisão domiciliar. Mas as mulheres não se beneficiam desse direito. Não há dúvidas sobre isso, ainda que não haja dados oficiais sobre o cumprimento dessa determinação”, afirma Luana, acrescentando que não há também como medir os efeitos da recomendação do CNJ até o momento.
De acordo com a pesquisadora, que faz residência pós-doutoral em Sociologia na UFMG, o Brasil tem a terceira maior taxa de aprisionamento de mulheres, com índices mais altos que Rússia e China, por exemplo. Do ano 2000 a 2016, o encarceramento cresceu 650%, e as unidades femininas têm quase 50% a mais de presas que a lotação apropriada. “Além disso, faltam infraestrutura, profissionais e insumos, o que é desastroso quando a prioridade absoluta é o controle de uma pandemia”, diz Luana Hordones, que, em 2017, conduziu pesquisa no Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, em Vespasiano, região metropolitana, para onde são encaminhadas as grávidas e mães de bebês de até um ano.
Fluxos interrompidos
Também pesquisadora do Crisp, Natália Martino estudou, no mestrado em Sociologia, a porosidade do sistema penitenciário. Segundo ela, as prisões não são lugares isolados da sociedade, como em geral se pensa. Seus muros são atravessados por fluxos afetivos, financeiros, de produtos como alimentos e materiais de higiene, de drogas lícitas e ilícitas, armas e celulares. Esses itens são levados para dentro e para fora dos presídios por famílias, entidades religiosas, grupos de defesa dos direitos humanos e facções criminosas.
“No quadro da pandemia, a suspensão de visitas, medida tomada para evitar a circulação do vírus, praticamente interrompeu a entrada de produtos de higiene pessoal e a saída de dinheiro, legal ou ilegal, importante principalmente para as mulheres, que quase sempre são as únicas responsáveis pelos filhos e precisam enviar recursos para o seu sustento”, explica Natália. Ela lembra também que a suspensão do acesso de organizadores de oficinas restringe a possibilidade de trabalho e de geração de renda.
“Se muitas dessas mulheres que têm direito à prisão domiciliar já estivessem com seus filhos, as famílias estariam mais bem cuidadas, e pessoas mais velhas, como avós e tias, estariam menos expostas à contaminação pelo coronavírus”, complementa a pesquisadora, que cursa o doutorado em Ciência Política na UFMG. Natália esclarece que, em geral, quando as mulheres são presas, outras mulheres da família, principalmente as avós das crianças, passam a se responsabilizar por elas. "São mulheres mais velhas e, portanto, de grupos de risco da Covid-19, e acabam mais expostas à contaminação dada a responsabilidade de cuidar (financeira e emocionalmente) das crianças, o que dificulta o isolamento. Assim, a manutenção da prisão de mulheres com filhos tende a fragilizar a proteção das suas famílias como um todo."
Pautas próximas
Dedicada, entre outros temas, à pesquisa sobre a expansão da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) para fora das divisas de São Paulo, especialmente para Minas Gerais, a socióloga Thaís Duarte salienta que esses grupos são alimentados, embora pareça contraditório, por ações do próprio Estado para conter o fenômeno. Uma das ações da forças de segurança e da administração do sistema penitenciário para reduzir a expansão do PCC no território mineiro é concentrar os presos ligados à facção na unidade de segurança máxima Nelson Hungria, localizada na região metropolitana de Belo Horizonte. “Medidas como essa potencializam a propagação dos valores da facção no estado”, diz a pesquisadora, que desenvolve trabalho de pós-doutorado em Sociologia na UFMG. Assim como Luana Hordones e Natália Martino, Thaís Duarte integra, no Crisp, grupo coordenado pela professora Ludmila Ribeiro, da Fafich.
Thaís Duarte ressalta ainda que as próprias facções são, em parte, resultado do encarceramento massivo, das altas taxas de superlotação e de violações de direitos humanos nas prisões. No contexto da pandemia da Covid-19, os problemas se ampliam, potencializando ações dos grupos criminosos, mas também pondo em risco a vida e a saúde dos presos e dos funcionários das penitenciárias. “O PCC divulgou uma carta em que reivindicava liberação em massa em razão da pandemia. Essa atitude guarda muita semelhança com as recomendações do CNJ e de organizações internacionais que defendem os direitos humanos. É muito interessante pensar que os lados da legalidade e da ilegalidade podem ter pautas muito próximas em situação de extremo risco”, diz a pesquisadora. “E não há resultados. Mantêm-se medidas restritivas que podem levar a mais encarceramento, com efeitos mais drásticos.”
Após analisar documentos públicos e reportagens que fazem referência à difusão do PCC no país e entrevistar presos e agentes na Nelson Hungria, Thaís concluiu que a presença de um grupo organizado no presídio é conveniente para os administradores, porque a facção impõe disciplina e controla os presos. “Em ambientes com lideranças muito claras e funções definidas, fica mais fácil para o Estado organizar. Trata-se de uma gestão partilhada. Nesses tempos de Covid, o equilíbrio frágil dessa cogestão fica ameaçado”, afirma.
‘Populismo penal’
As pesquisadoras do Crisp são unânimes em ressaltar que o hiperencarceramento que marca as políticas de segurança pública no Brasil torna impossível a gestão dos presídios de maneira minimamente adequada quando é preciso, como atualmente, evitar a contaminação em massa nas unidades. “Grande parte das pessoas presas não deveria estar lá. Ainda que o Código Penal trate a prisão como último recurso, ela é usada judicialmente como a primeira solução”, afirma Natália Martino. “É preciso rever as prisões provisórias, respeitar as regras de progressão de regime e cumprir leis e decisões judiciais que preconizam a prisão domiciliar.”
Natália comenta que a recomendação do CNJ foi recebida com muita resistência nos meios político e jurídico, nos quais, segundo ele, repete-se o “discurso do populismo penal”, aquele segundo o qual quanto mais se prende, mais segura está a sociedade. “Isso não é verdade, sobretudo num país cujo sistema prisional gera crime, ao invés de resolver o problema”, ela diz. De acordo com Natália Martino, as notícias são de que alguns tribunais determinaram a soltura de alguns presos. Foi um movimento muito tímido. Qualquer medida para conter a pandemia nos presídios, assim como para combater qualquer outro problema, será ineficaz se não se reduzir a superpopulação.”
Dados qualificados
Em situação de normalidade, as prisões brasileiras costumam ser pouco permeáveis ao controle social. Há poucos dados públicos confiáveis, e é muito difícil monitorar e pesquisar em espaços carcerários, segundo Thais Duarte. “No contexto da pandemia, esta situação pode ser ainda mais dramática, ficando ocultas à população as condições de saúde das pessoas presas e dos funcionários prisionais.
Thais afirma que é possível observar um esforço do Depen para oferecer informações sobre as medidas adotadas pelos governos estaduais e federal diante da pandemia, mas há fortes riscos de subnotificação de casos de presos e profissionais infectados. Por isso, em sua visão, são essenciais medidas de controle empreendidas por órgãos autônomos, como o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, que vem divulgando relatórios sistemáticos sobre as condições carcerárias fluminenses. “Também é imprescindível que os estados abram seus dados prisionais às universidades para que possam ser traçadas estratégias conjuntas de enfrentamento à pandemia, com rigor científico”, diz Thais Duarte. “Os desafios são muitos e só podem ser superados com dados qualificados, coletados com rigor e seriedade metodológica. A ciência ganha papel ainda mais relevante no contexto que vivenciamos agora.”