Arte e Cultura

'Aonde o povo está': corais da UFMG lançam composições on-line

Ars Nova gravou canção vencedora de concurso nacional, e o Cantáridas, do ICB, fez releitura de clássico consagrado por Milton Nascimento

As gravações virtuais feitas por coros musicais são um retrato dos tempos vividos em 2020. Em meio aos desafios impostos pela pandemia, o desejo de continuar indo "aonde o povo está" levou o Ars Nova-Coral da UFMG e o Cantáridas, do ICB, a investir em novas possibilidades de aproximação com seus públicos. 

Durante a quarentena, o Ars Nova realizou gravações virtuais que já somam mais de 22 mil visualizações no YouTube e mantém um quadro de entrevistas ao vivo com convidados especiais, o Conversa com o maestro, apresentado pelo regente Lincoln Andrade. O coro também vem participando de festivais on-line e organizou um concurso nacional de composição, que registrou 88 inscrições, e premiou a obra Baião armorial, de Etel Frota e Maurício Detoni, lançada nesta semana.

Membro da Academia Paranaense de Letras, Etel Frota já compôs para grandes artistas da MPB, como Maria Bethânia. Maurício Detoni foi regente de coros no Mato Grosso e no Rio de Janeiro, além de ter participado do grupo Garganta Profunda e de diversos espetáculos musicais. A dupla escreveu Baião armorial a distância e de forma simultânea, usando a internet para unir melodia e letra.

“Do mesmo jeito que o Ars Nova está aprendendo a montar uma obra inédita já em formato on-line, nós também estamos aprendendo a compor. Compusemos ‘do zero ao cem’ no Whatsapp. Maurício cantarolava uma estrofe, e eu ia trabalhando na letra. Foi absolutamente interativo”, disse Frota, em entrevista ao programa Conversa com o maestro. A gravação de vídeo foi feita por Ernani Maletta, dramaturgo e professor da Escola de Belas Artes da UFMG, e contou com direção musical do próprio regente do Ars Nova.

Dureza e lirismo
Em sua letra, a canção aborda temas atuais, como a própria pandemia (há referências, por exemplo, à busca por respiradores e à controvérsia do tratamento com cloroquina) e episódios específicos como os incêndios no Pantanal e a nuvem de gafanhotos que atingiu o sul do país. “São assuntos ruins, mas o poema não é duro. Ele traz certo lirismo”, comentou o maestro Lincoln Andrade. “Mas sem deixar de mergulhar em um momento de profunda tristeza, que é o momento armorial", analisou Etel Frota. "Nós temos o momento de indignação, nós temos o momento de profunda tristeza, mas acabamos pedindo que nosso olhar de ver a beleza e de ver a esperança se salve. Nós [Etel e Maurício] acabamos transitando pelas emoções que todos estão vivendo, todos os dias, nos últimos sete meses."

Para traduzir a proposta da música em um vídeo feito em casa, o Ars Nova contou com a direção cênica do professor Ernani Maletta, da Escola de Belas Artes, nome associado aos espetáculos Carmina Burana: uma cantata cênica, O grande circo místico, Ifigênia em Áulis (Eurípides) e Electra (Sófocles).

“Quando o Lincoln me chamou para fazer a criação do vídeo, a primeira coisa que eu quis foi ser muito fiel ao meu lugar na arte, que é esse entrelaçamento entre o teatro e a música. Minha preocupação foi encontrar uma dramaturgia que se relacionasse à interpretação da música, seus aspectos sonoros e textuais, às frases rítmicas e melódicas. Embora a manifestação final não seja por intermédio do teatro, o caminho que eu usei para chegar ao vídeo foi a ideia da cena”, disse Ernani Maletta.

Da alienação à esperança
A dramaturgia do vídeo foi dividida em três momentos: alienação, medo e esperança. Além da letra, Maletta apostou em outros elementos que poderiam transmitir esses sentidos. A tela deixa de mostrar apenas o naipe que está cantando cada estrofe, como ocorria nos coros virtuais anteriores, e passa a mostrar mais pessoas realizando outras atividades.

“Tive a ideia de usar todas as interferências que o coro faz quando não está carregando a letra da música como uma espécie de reação a essa letra. É um texto muito forte, que traz uma denúncia muito significativa da situação complexa que o país vive. Ao mesmo tempo que um dos naipes está como enunciador do texto, os outros naipes têm outro tipo de proposta sonora, fazem outro tipo de onomatopeia de som, outros fonemas”, afirmou Maletta.

'Nada a temer, senão o correr da luta'

Caçador de mim, composta por Sérgio Magrão e Luiz Carlos Sá e consagrada na voz de Milton Nascimento, foi gravada a distância pelo Coral Cantáridas, coordenado pela professora Rosy Isaías. Foi a terceira produção do grupo nesta quarentena. Segundo Matheus Almeida, produtor do vídeo e pianista do Cantáridas, a ideia foi "revisitar uma das músicas de grande repercussão e significado do nosso repertório". 

O material usado para produzir Caçador de mim foi gravado individualmente pelos coristas em sua casa. O trabalho de pós-produção uniu essas gravações na sequência da música para conferir harmonia sonora ao conjunto.

"A atmosfera sonora da música nos convida a um estado introspectivo. A letra somada às vozes do coro traduz o drama do ser humano na busca pelo autoconhecimento. Isso nos ampara em momentos de escape, ao mesmo tempo que nos faz refletir sobre os desafios e as dificuldades que enfrentamos", afirma o maestro Gabriel Santos.

Sobre o significado da letra, a soprano Renata Mendes comenta que Caçador de mim também vai ao encontro da própria experiência na pandemia. "Há muita vida para ser vivida, e é preciso espírito de luta para enfrentar os percalços do isolamento", sentencia Renata, que recorre a um trecho da letra da canção para sustentar o seu argumento: "Nada a temer, senão o correr da luta, nada a fazer, senão esquecer o medo".

Trajetórias
Desde sua fundação, em 1959, o Ars Nova-Coral da UFMG conquistou prêmios e condecorações em importantes festivais nacionais e internacionais e realizou mais de 1,5 mil apresentações no Brasil e em outros 17 países. 

Criado em 1991 no ICB, como parte do projeto Corais no campus da Escola de Música da UFMG, o Coral Cantáridas construiu um repertório eclético formado por canções brasileiras populares, folclóricas e sacras.

Gabriela Augustha / com assessorias de comunicação do Ars Nova e do ICB