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'Criança não é mãe': a tentativa de uma juíza de impedir uma criança vítima de estupro a realizar um aborto legal

Professora analisa os recentes ataques aos direitos reprodutivos das mulheres brasileiras


A luta pelo aborto legal, seguro e gratuito é uma pauta histórica das mulheres em vários países. No Brasil, a prática é considerada crime tipificado no Código Penal, em 1940. Porém, a lei inclui ressalvas que tornam a interrupção da gravidez legal em determinadas circunstâncias. O aborto não é crime se for feito em uma gestação resultante de estupro ou se houver risco à vida da gestante em manter o feto. Em 2012, foram também incluídos na lista os casos de fetos anencéfalos, por decisão do Supremo Tribunal Federal. 
Nesta semana veio à tona um episódio em Santa Catarina que chocou o país. Na segunda-feira, 20, foi divulgada uma reportagem do jornal The Intercept Brasil que denunciou a conduta da juíza Joana Ribeiro Zimmer, que induziu uma criança de 11 anos, que engravidou após ser estuprada, a não fazer o aborto. O trabalho jornalístico apresenta áudios que evidenciam a coação que a representante do estado fez contra a criança. A menina e a mãe dela já haviam decidido pelo procedimento e procuraram o Hospital ligado à Universidade Federal de Santa Catarina para que a interrupção fosse feita, mas o pedido foi negado. A unidade disse que, por uma norma interna, o aborto legal só poderia ser feito em uma gestação de, no máximo, 20 semanas, enquanto a garota já chegava às 22 semanas e dois dias. O hospital, então, pediu uma autorização judicial para realizar o aborto, e o caso chegou à juíza Zimmer. Baseada em uma norma técnica do Ministério da Saúde que recomenda que o aborto em caso de violência sexual seja realizado entre 20 e 22 semanas de gravidez, a magistrada não autorizou o procedimento. Além disso, ela enviou a criança a um abrigo para impedi-la de interromper a gravidez. No áudio divulgado pelo The Intercept Brasil, a juíza sugere que a menina mantenha a gestação e entregue o bebê para algum casal criar e pergunta a ela: “Você suportaria ficar mais um pouquinho?”.
Após a repercussão negativa do caso, com a campanha “Criança não é mãe, estuprador não é pai”, que se espalhou pelas redes sociais, a juíza deixou o caso, alegando ter recebido uma promoção para atuar em outra comarca no estado. Na terça-feira, 21, uma desembargadora autorizou a menina a voltar a morar com a mãe depois de mais de 40 dias num abrigo. A criança deixou o local já caminhando para a 29ª semana de gravidez. A defesa da família afirmou ter entrado com um habeas corpus no Tribunal de Justiça de Santa Catarina para realizar o procedimento de interrupção. A corregedoria do mesmo tribunal abriu investigação contra a juíza Joana Zimmer. 
Há inúmeros elementos que comprovam que o acesso ao aborto legal é cada vez mais dificultado no Brasil. Um deles é a recente publicação pelo Ministério da Saúde do documento “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento'', no qual divulga informações incorretas sobre a legislação ligada ao procedimento, a principal delas é a de que “não existe aborto legal no Brasil”. Diversas entidades ligadas aos  direitos humanos e ao direito à saúde das meninas e mulheres se pronunciaram contra a cartilha do Ministério e emitiram nota de repúdio. Entre elas está o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis). Segundo a nota, a pasta defende “o suposto reconhecimento dos direitos patrimoniais de nascituros, a necessidade de investigação policial nos casos de gravidez decorrente de estupro e o não reconhecimento do óbito materno por aborto como um problema de saúde pública” em “um imenso retrocesso na área da saúde pública e institucionaliza o desrespeito a direitos fundamentais das meninas e das mulheres”. Apesar das manifestações contrárias, o Ministério da Saúde não retirou a publicação do ar, e convocou uma audiência pública para discutir o assunto com a sociedade. 
O programa Conexões conversou com a professora Gabriela Rondon, que é professora no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa e advogada e codiretora da Anis.

Produção: Alícia Coura e Arthur Resende, sob orientação de Alessandra Dantas e Luiza Glória