Pesquisa e Inovação

Crise política impulsiona desmatamento e emissões de carbono no país

Em artigo, pesquisadores da UFMG mostram que má governança ambiental põe em risco a contribuição brasileira para o Acordo de Paris

Mapas mostram evolução do desmatamento de 2018 a 2050
Mapas mostram projeção da evolução do desmatamento de 2018 a 2050
CRS / UFMG

Sétimo maior emissor mundial de gases de efeito estufa (GEE), o Brasil tem dado apoio político a práticas agrícolas predatórias, o que pode impossibilitar o cumprimento de metas compatíveis com a contribuição do país ao objetivo estabelecido no acordo climático de Paris. O alerta está em artigo publicado nesta semana, na revista Nature Climate Change, por pesquisadores da UFMG, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade de Brasília (UnB).

Um dos autores do trabalho, o professor Raoni Rajão, do Departamento de Engenharia de Produção da UFMG, explica que, historicamente, a dinâmica do desmatamento no país tem sido moldada não apenas por ações administrativas concretas, mas também pelos sinais enviados pelo governo, que podem, direta ou indiretamente, incentivar os agentes econômicos a decidir se desmatam ilegalmente ou não.

Rajão comenta que, em alguns setores, estabeleceu-se a certeza de que basta pressionar para que o presidente assine decretos que desprotegem uma reserva de cobre ou uma grande unidade de conservação, por exemplo, o que “dá uma sensação de poder a quem está desmatando, e isso vai ser traduzido em desmatamento”. Assim, mesmo com a manutenção e o aprimoramento das políticas de controle do desmatamento, existe o risco de que a perda das florestas continue se acelerando nos próximos anos.

O arranjo institucional também pode ser afetado pelo grau de cooperação com o regime internacional sobre mudança climática. Firmado por 195 países no fim de 2015, com efeito a partir de outubro de 2016, o Acordo de Paris da Convenção Climática definiu o compromisso de manter o aumento da temperatura média global em menos de 2°C com relação aos níveis pré-industriais.

Por meio de modelos de avaliação integrados, desenvolvidos especificamente para o Brasil, os autores desenham três cenários de emissão de dióxido de carbono (CO2) e estimam o esforço necessário em outros setores da economia para compensar o enfraquecimento da governança ambiental que resulta potencialmente em maiores taxas de desmatamento.

É intenção dos autores do artigo, segundo o professor, enfatizar a noção de orçamento de carbono, recurso limitado que precisa ser usado por todos os setores da economia “da maneira mais inteligente possível, para promover o máximo de crescimento”. O orçamento fixo de carbono que o Brasil pode emitir, de 2010 a 2050, é de 24 gigatoneladas (GtCO2). 

“Dependendo do cenário de governança ambiental, sobrariam apenas 0,9 GtCO2 para todos os outros setores. É um cenário muito apertado. E, para respeitar a meta Mundo de 2°C, o Brasil terá que comprar créditos de carbono de outros países, porque não tem tecnologia suficientemente desenvolvida para que os outros setores emitam tão pouco”, pondera Raoni Rajão. Em sua opinião, o setor produtivo precisa estar atento a essa realidade e “começar a ter um diálogo interno mais articulado, para racionalizar a forma como cada um está emitindo GEE”.

Cenários
De acordo com os autores do artigo, a governança ambiental no Brasil pode ser dividida em três grandes períodos: pré-2005, em que era muito precária e com altas taxas de desmatamento; 2005 a 2011, com resultados efetivos na redução do desmatamento; 2012 a 2017, em que a governança sofreu erosão gradual, com a grande anistia concedida a desmatadores ilegais, na revisão do Código Florestal, e agravada pela crise política. Por esses motivos, mesmo que tenham sido aprimoradas, as políticas de controle não conseguiram impedir o aumento no desmatamento, de 2012 a 2017.

Em entrevista ao Portal UFMG, Rajão e a pesquisadora Juliana Leroy Davis, também autora do artigo, falam sobre as emissões previstas em três cenários – de fraca, intermediária e forte governança ambiental – e detalham a forma de trabalho adotada pela equipe da UFMG, liderada pelo professor Britaldo Soares-Filho, e pelos colegas da UFRJ e da UnB. Juliana Davis é doutoranda do programa de pós-graduação de Engenharia de Produção e pesquisadora associada ao Centro de Sensoriamento Remoto (CSR), do Instituto de Geociências (IGC), ambos da UFMG.

'Orçamento de carbono precisa entrar para a agenda política do país'

Raoni Rojão e Juliana Davis compõem, com Britaldo Soares-Filho, a equipe da UFMG que assina o artigo
Raoni Rojão e Juliana Davis [na foto] compõem, com Britaldo Soares-Filho, a equipe da UFMG que assina o artigo Foca Lisboa / UFMG

Dos cenários de desmatamento desenhados pelo grupo de pesquisa, qual parece ser o mais factível para o Brasil?
Raoni Rajão – Com base nos dados observados no passado recente, definimos três cenários. O melhor seria aquele com queda do desmatamento, devido a um reforço na capacidade do governo, e a sinalização política de que o desmatamento não será tolerado. O pior cenário, de governança fraca, seria o de abandono completo das políticas de controle do desmatamento atualmente em curso e com a reversão das emissões aos níveis anteriores a 2005.

Entendemos como tendencial o cenário intermediário, que é a realidade atual, com retomada do desmatamento. Mesmo com a manutenção das políticas de proteção, há uma crescente sinalização pró-desmatamento.

Quais as consequências práticas desse modelo?
Raoni Rajão – Um dos conceitos de fundo que quisemos explicitar é que o orçamento climático, ou seja, aquilo que cada país pode emitir, é um bolo limitado de recursos. Toda vez que ligamos o carro, estamos gastando uma parte dele. E quando o governo gasta esse recurso de maneira indevida, em troca de votos ou em uma troca política passageira, está gerando uma conta para as gerações futuras.

O problema é que se a tendência de desmatamento continuar, juntamente com essas barganhas, será preciso investir de 2 a 5 trilhões de dólares para alcançar a meta de Paris, no pior cenário. Para produzir a energia para as nossas casas, não bastará uma tecnologia intermediária, como a queima de biocombustível, ou uma termelétrica – será preciso comprar tecnologia de ponta, caríssima, para produzir energia, por exemplo, enterrando as emissões debaixo da terra, o que hoje é inviável do ponto de vista comercial. A própria indústria, as siderúrgicas terão de pagar uma taxa de carbono altíssima para se modernizar, e talvez até mesmo prematuramente.

O desmatamento para uso da terra provoca muitas emissões. E esse desmatamento não é para produção em larga escala, mas o de fronteira, em áreas com baixíssima viabilidade agrícola, para especulação de terra. Isso tira de setores produtivos da economia a possibilidade de gerar retorno. O orçamento é um só, não pode ser gasto por um único setor da economia e nem para gerar pouco crescimento.

Por isso, não é papel exclusivamente do ambientalista se preocupar com as emissões. A questão não deve ser uma briga entre setor ambiental e setor produtivo, mas entre setor produtivo de baixo ganho econômico e altas emissões e setor produtivo de alto ganho econômico e baixo carbono. É mais ou menos como no orçamento da União, que não é uma fonte eterna de dinheiro. Se cada setor tenta tirar para si, o país vai à falência. A mesma coisa vai acontecer com o orçamento de carbono.

Traduzindo em números, como está a conta das emissões no Brasil?
Raoni Rajão – Existe uma série de estudos diferentes que calculam o orçamento total do país, para que o mundo possa cumprir o Acordo de Paris. Nós calculamos o acumulado do que é emitido a cada ano. Dentro de um orçamento médio de carbono mostrado por esses estudos, o Brasil poderia emitir, de 2010 a 2050, 24 gigatoneladas de GEE. Como gastar essas 24 gigatoneladas gerando o máximo de crescimento possível? Isso precisa ser equacionado.

De 2010 a 2016, já foram emitidas 4,6 GtCO2. Assim, restam pouco mais de 19 GtCO2. No pior cenário, só o desmatamento vai emitir 23,1, sobrando apenas 0,9 para os outros setores. É um cenário muito apertado, já que tudo gera certa emissão, seja a produção de carne e agrícola ou a fabricação de carros. E, para respeitar a meta de 2°C, o Brasil terá de comprar créditos de carbono de outros países, porque não existe tecnologia suficientemente desenvolvida para os outros setores emitirem tão pouco e o desmatamento, tanto.

No cenário intermediário, o desmatamento será responsável por 16,3 GtCO2 de emissão. E a diferença, de 7,7 GtCO2, seria emitida pelos outros setores, como indústria e energia. Mas isso vai gerar custo adicional de U$ 2 trilhões para comprar tecnologia, o que significa uma conta de luz mais cara para o consumidor e um custo de produção maior para as empresas. Infelizmente, esse cenário é o tendencial, pois estamos já caminhando nessa direção.

Note-se que, mesmo no cenário de governança forte, consideramos também espaço para as emissões do uso da terra, que seriam de 10 GtCO2. E sobrariam 14 GtCO2 para os outros setores, para que tenham tempo de se modernizar tecnologicamente.

Por isso, não é o abraçador de árvore que tem de se preocupar com emissão de carbono, mas, sim, quem está pensando o desenvolvimento do país em longo prazo. É necessário que o orçamento de carbono vire tópico de debate e entre para a agenda política do país.

Como esses cálculos foram feitos?
Juliana Davis – Tem toda uma parte metodológica de modelo, seja do ponto de vista de energia, seja de uso do solo, que nos permite fazer essas contas. Desenvolvemos, no Centro de Sensoriamento Remoto do IGC, a modelagem de uso do solo, que possibilita descobrir o que esse cenário representa em termos de emissões.

Contamos com três equipes de trabalho. Os professores Raoni Rajão [UFMG] e Eduardo Viola, da UnB se concentraram mais na análise política e na observação dessa causalidade entre crise política, governança e os cenários de desmatamento. Nossa equipe do CSR e do Departamento de Engenharia de Produção da UFMG traduziu isso em taxas de desmatamento. Trabalhamos com esses cenários de mudanças de uso do solo e calculamos o desmatamento e as emissões de GEE dele provenientes. 

A terceira equipe, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe/UFRJ), estimou as emissões e a participação dos outros setores da economia. Porque o objetivo do artigo foi entender, com base nesses cenários, o quanto o uso do solo e o desmatamento emitiriam GEE e, portanto, quanto sobraria para os outros setores, dentro de um orçamento fixo de carbono, e o quanto eles teriam que se esforçar para não ultrapassar esse limite de emissões, para o cumprimento do Acordo de Paris.

Trabalhamos com o modelo Otimizagro, desenvolvido no software de modelagem ambiental Dinâmica EGO, que vem sendo aprimorado há 20 anos, aqui no CSR, e utilizado mundialmente. E com o Blues, desenvolvido na Coppe/UFRJ, também de grande relevância internacional. São exemplos de ciência de ponta feita no Brasil, por uma equipe engajada com política pública, em universidades federais. E publicamos em uma revista que é referência global no assunto, com modelos desenvolvidos no Brasil, para o Brasil.

O que o Brasil deve fazer para tentar reverter esse cenário?
Raoni Rajão – É preciso mudar a forma do debate. Em parte é o governo que deve atuar – liberando, por exemplo, as vagas de concurso para o Ibama, que estão presas há quase um ano, e criticando as movimentações pró-desmatamento do Congresso, pois esse aspecto simbólico é importante. Hoje basta a bancada ruralista pressionar para que o presidente assine decretos, por exemplo, desfazendo uma reserva ou desprotegendo uma enorme unidade de conservação. Isso dá uma sensação de poder a quem está desmatando e vai ser traduzido em mais destruição. 

Além disso, o setor produtivo precisa começar a ter um diálogo mais articulado entre a agricultura e o setor industrial, para tentar racionalizar a forma como o país está emitindo. Nossa intenção é enfatizar a noção de orçamento de carbono, que o recurso é limitado e deve ser usado da maneira mais inteligente possível.

Artigo: The threat of political bargaining to climate mitigation in Brazil
Autores: Pedro Rochedo (UFRJ), Britaldo Soares-Filho (UFMG), Roberto Schaeffer (UFRJ), Eduardo Viola (UnB), Alexandre Szklo (UFRJ), André F. P. Lucena (UFRJ), Alexandre Koberle (UFRJ), Juliana Leroy Davis (UFMG) , Raoni Rajão (UFMG) e Regis Rathmann (UFRJ)
Publicação: Nature Climate Change, edição de julho de 2018

Ana Rita Araújo