Deficiências sem tabus: Sônia Pessoa, da Fafich, lança livro sobre filho que morreu aos dez anos
Pedro morreu devido a um mal súbito causado por sua hidrocefalia; professora da Comunicação fez da experiência pessoal um manifesto em defesa do diálogo aberto sobre as deficiências
Neste sábado, 14, às 11h, a jornalista e professora Sônia Caldas Pessoa, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG, lança o livro Afetos de mãe: amor, morte e vida no Galpão Flor do Campo, no bairro Santa Efigênia. Acessível a pessoas com deficiência, o Galpão fica localizado na rua Coronel Otávio Diniz, 449. No livro, entre textos e imagens, Sônia apresenta fragmentos de sua experiência de vida com o filho Pedro, que morreu em 2016, aos dez anos de idade, devido a um mal súbito causado por sua hidrocefalia, deficiência que resulta no acúmulo anormal de líquor nos ventrículos do cérebro.
O livro não narra uma história cronológica. Seus capítulos discorrem de forma livre sobre o desafio de ser mãe de uma criança com deficiência, a dor pela morte do filho, o divórcio de um longo casamento, o trabalho de cuidar do pai com câncer logo após a partida do filho e a sequente morte desse pai – discorrem, em suma, sobre o eterno recomeçar diário. Por meio desses temas, a autora trata de questões sociais e coletivas como gênero, capacitismo e os lugares sociais de filha, mãe, mulher, professora e pesquisadora na sociedade atual.
Surgido a partir do blog Tudo bem ser diferente, criado por Sônia em 2011 e mantido ativo até 2016, Afetos de mãe tem, em seu prefácio, frases ditas por Pedro e colecionadas pela autora ao longo dos anos. Em meio à rotina de cuidado do filho, Sônia se vê moldando sua vida profissional pelas vivências em casa. Afetos, vulnerabilidades, deficiências e escritas afetivas vão se tornando também temas de pesquisa da professora.
Na entrevista abaixo, o Portal UFMG conversa com Sônia Pessoa sobre os desafios e as alegrias de maternar Pedro, uma criança com hidrocefalia, e a importância da inclusão – sem tabus – de pessoas com deficiência para o seu efetivo protagonismo na vida coletiva social.
De que impulso nasceu o livro? O que te motivou a partilhar com todos nós sua história com Pedro? E como você resumiria essa história para alguém que terá o primeiro contato com o livro e não acompanhou suas postagens no blog?
Eu sou mãe de um garoto com deficiência, o Pedro. Ele teve hidrocefalia ainda bebê e, infelizmente, morreu em janeiro de 2016. Durante sua vida, desde que nasceu, em função das sequelas causadas pela hidrocefalia e das inúmeras cirurgias neurológicas realizadas, eu comecei a atuar como ativista por uma educação inclusiva, pensando seus vários aspectos, a socialização, o trabalho nas escolas, as estratégias pedagógicas. Por isso, eu criei o blog chamado Tudo bem ser diferente, que foi alimentado durante a vida do Pedro.
Mas sempre me pediram para escrever um livro sobre minha experiência. Os textos do blog foram referência para muitas mães que, por volta de 2011 até 2016, quando o Pedro morreu, não contavam com outros espaços de troca, de escuta e de partilha das experiências sobre deficiências e educação inclusiva. Após a morte dele, os pedidos para eu escrever o livro se somaram às discussões sobre o luto, sobre refazer a vida, sobre reconfigurar as experiências a partir dessa vivência, que é traumática, dolorosa e nos provoca muitos impulsos para mudar toda a nossa concepção de vida.
Em Afetos de mãe, o que eu tento mostrar é a minha experiência de gestar uma criança, que foi maravilhosa, tranquila e com todos os acompanhamentos... e as vivências de lidar com situações extremas, como quando Pedro fazia cirurgias neurológicas, por exemplo, e os boletins médicos apontavam que ele não passaria daquele dia.
Por outro lado, também mostro momentos de muita felicidade, porque o Pedro era uma criança muito alegre, muito musical, feliz e intensa. Ele vivia tudo e nos fazia viver como se tudo fosse a primeira e a última vez. Narro suas aventuras, o modo como ele concebia a vida.
Apesar de ele ter morrido pouco antes de fazer dez anos, Pedro era muito consciente das suas dificuldades motoras e cognitivas. Ele se comparava muito com outras crianças, pensava sobre a sua condição. No livro, lido com a morte inesperada, com a vida que envolve várias questões de gênero e sociais, com minhas experiências, mas que podem ser, também, de outras mulheres, entre outras intercorrências da vida.
No livro, a escrita é corrente. Posso dizer que há três grandes capítulos que contextualizam as pessoas leitoras, que dizem quem sou eu, de onde eu estou falando e que não pretendo convencer ninguém, nem julgar pessoas que participaram dessa história, por serem puro processo de afetação diante de tantos desafios da vida.
Pedro foi diagnosticado com hidrocefalia aos quatro meses. Antes disso, já havia indícios da hidrocefalia? Como foi o processo até o diagnóstico?
Não, a gente não teve nenhum indício. Foi uma gravidez muito saudável, até bastante atípica. Eu não tive enjoos, tinha uma energia fantástica. Trabalhei até praticamente o dia em que o Pedro nasceu. Todos os exames estavam dentro do previsto para uma criança saudável. Tem até um texto no livro em que eu conto como foi o diagnóstico. Era uma consulta de rotina, Pedro tinha quatro meses de idade, e a pediatra, muito experiente, notou que a fontanela, a parte de cima da cabeça, estava um pouco dilatada e não havia fechado completamente. Além disso, o perímetro cefálico da cabeça havia crescido três centímetros de um mês para o outro. Na hora, ela me disse para agendar um neurologista. Mas a intuição de mãe me mandou ir imediatamente ao hospital. E por lá nós ficamos. Descobrimos que Pedro tinha um tumor benigno no cérebro, e esse tumor impedia a passagem do líquido. Isso provocava a hidrocefalia, que, de um modo muito simplório, não científico, significa "acúmulo de líquido no cérebro". Esse excesso pode comprometer funções cognitivas, de coordenação motora fina e grossa, e outros vários aspectos sensoriais.
No livro você descreve muitas situações cotidianas. Como a hidrocefalia moldou a rotina de vocês?
Dos quatro meses até uns dois anos de vida, o Pedro passou por sete ou oito cirurgias neurológicas. Eu já não me lembro bem o número. A medicina já estava desenvolvida, e, nos casos de hidrocefalia, é colocada uma válvula no cérebro, e a pessoa vive assim até a idade adulta, com uma boa condição de vida. A questão é que o Pedro teve alergia a todos os tipos de válvula que foram colocadas, dava infecção e eram retiradas. Até que se optou por fazer uma cirurgia bem arriscada, que é uma ventriculostomia, procedimento que cria um canal artificial para o líquido ser drenado no organismo, reproduzindo o que ocorre com quem não tem hidrocefalia.
'A vida foi se conformando para que as minhas temáticas de trabalho estivessem conectadas com as minhas próprias experiências de vida'
Foi um momento de muito impacto, porque nós precisávamos estar atentos à vida dele. Viver ou morrer. Nós vivíamos um extremo de muitos cuidados, muitas internações hospitalares. Eventualmente, era necessário que o Pedro tivesse um acompanhamento de enfermeiros de planos de saúde em casa, porque ficar no hospital não era seguro para a saúde dele por causa da infecção. Mas ele mostrava muita resiliência, não dava trabalho nas internações, não chorava, não reclamava ou resmungava, parecia aceitar a condição que lhe era dada. E, depois, com a estabilização do estado de saúde dele, nós passamos a uma outra fase.
Queríamos oferecer o melhor para o Pedro, potencializar suas habilidades e aproveitar a vida. Ele adorava passear, levantava todos os dias e perguntava onde iríamos. E a gente, com todos os compromissos e terapeutas marcados, dávamos um jeito de ir numa pracinha, de caminhar na rua, de visitar algum lugar. Em todas as viagens que nós fizemos, nacionais e internacionais, a gente se precavia muito, tomava todos os cuidados, organizávamo-nos de um modo em que o que era possível ser controlado era controlado, mas nunca nos privamos, nem a ele, de nada. Nós sempre pensamos: “Ele deseja viver, ele deseja passear, ele pede por isso, ele quer viajar, então vamos fazer juntos e que ele aproveite ao máximo”. Esse era o espírito. Tudo foi vivido com muita intensidade. Talvez seja por isso que eu tenho uma sensação de muita tranquilidade.
'Quando lutamos por temas sensíveis, por Direitos Humanos, a nossa experiência está conectada com experiências alheias'
As pessoas me perguntam se eu tenho algum arrependimento, mas minha consciência é tranquila. Claro, sabemos que as condições financeiras e estruturais de cada família são diferentes, mas nós éramos uma família de classe média que podia oferecer os melhores serviços de saúde, terapia e entretenimento. A gente não guardava o Pedro dentro de casa, nós o víamos como do mundo. Ele não nos pertencia. O que era possível fazer para que ele tivesse autonomia, nós fizemos.
Como jornalista e professora, você se encontrava em uma rotina de cobrança extrema da presença, de dedicação constante. Conciliar a vida profissional com as funções maternas e domésticas era um desafio?
A mulher é sempre muito cobrada, somos muito exigidas o tempo todo. Quando eu engravidei do Pedro, eu já tinha passado por duas gravidezes que não se desenvolveram, tinha 34 anos e pensava: “Eu sou capaz de fazer tantas coisas, me envolver em tantos projetos e em tantas atividades, então sou capaz de conceber uma vida, e essa vida vai fazer parte da minha vida”. Por isso, nunca vi o Pedro como um peso, um problema. Muitas mães sofrem com a maternidade no sentido de não dar conta, de ser muito difícil conciliar. Sim, o Pedro tinha muita dificuldade para dormir, tinha insônia por conta da hidrocefalia, dos traumas da vida em hospital, e havia épocas em que eu ficava extremamente cansada, mas eu sempre pensava que a gente leva da vida o que a gente vive aqui. Fui criada numa família em que a gente não tinha nada, tínhamos apenas o trabalho. Eu falo um pouco disso no livro. O trabalho é como se fosse um norte na nossa vida, e meus pais lutaram muito para que a gente estudasse. E eles pensavam que essa era a única herança que podiam nos deixar.
'Brasil tem uma legislação relativamente avançada, em comparação a outros países'
Eu fiz o doutorado quando o Pedro já era nascido, ele me acompanhou em todas as fases. Eu mudei o tema da minha tese, que era sobre estudos radiofônicos, para questões relacionadas ao discurso sobre a deficiência. De algum modo, a vida foi se conformando para que as minhas temáticas de trabalho estivessem conectadas com as minhas próprias experiências de vida. Se eu pesquisava para saber sobre a saúde do Pedro, sobre educação inclusiva, sobre questões de deficiência, isso também se incorporava ao meu trabalho. Essa experiência me ajudava, ajuda até hoje, a tratar de temáticas sensíveis de um modo e de um lugar que pode parecer muito individual, muito singular, mas que é muito coletivo.
Quando lutamos por temas sensíveis, por Direitos Humanos, a nossa experiência está conectada com experiências alheias. Muitas outras pessoas estão vivendo, passando por situações que têm pontos de conexão com o que eu passo. O que me levou foi uma pulsão de viver, aproveitando o que já tinha me sido dado pela família, que era a educação, e ao mesmo tempo pensar que aquela vida do Pedro, que era muito instável, mas ao mesmo tempo muito profícua, também me alimentava em tudo isso. Muitas pessoas me perguntam como eu cheguei aonde estou. Eu não sei responder, mas posso dizer que me esforcei. Acho que ainda me esforço todos os dias para me levantar e honrar a vida, honrar o desejo de viver.
Nos seus textos para o blog, você fala da sua experiência em conseguir uma escola para o Pedro na França, onde fez seu doutorado-sanduíche. Em dado momento, você menciona que foi um processo muito respeitoso. É possível pontuar diferenças entre o tratamento que lhe foi dado no exterior e o que você recebia aqui no Brasil em relação à deficiência do Pedro?
Essas comparações são sempre muito difíceis. A gente tinha experiências no Brasil com escolas particulares. Antes de nos mudarmos para a França, fizemos pesquisas durante um ano. Estivemos lá pessoalmente, tentamos entender o sistema de educação e decidimos que o melhor lugar seria uma escola pública. Eu não sei se a gente pode atribuir à sorte, como algumas pessoas dizem, porque eu me lembro que quando eu postava no blog as experiências na França, as pessoas diziam que nós éramos iluminados, porque não tiveram boas experiências sendo pessoas com deficiência ou sem deficiência. Por algum motivo, nós caímos numa escola cujo diretor nos acolheu de um modo muito hospitaleiro. E em momento algum a gente sentiu que a condição do Pedro era um problema. Nós tivemos todo o apoio de equipe transdisciplinar, médico, pedagoga, terapeuta, das professoras. Conseguiram algo que dizem demorar muito na França, que é um auxiliar de vida escolar, alguém para ficar em sala de aula e intermediar algumas atividades que são mais desafiadoras para a criança.
Eu não sei a que atribuir isso, se o universo pensou que Pedro merecia essa chance, ou se essa é a uma condição efetiva do modo como se pensa deficiência lá, mas eu já li muito e já troquei muitas experiências com mães brasileiras e francesas que passaram por muitas dificuldades ou não tiveram o mesmo tratamento dado a mim. O diálogo entre as famílias também é muito importante. No caso das crianças e as escolas, eu penso que quando uma família está aberta ao diálogo e não está numa posição de enfrentamento, ela tende a conseguir melhores resultados.
'Me esforço todos os dias para me levantar e honrar a vida, honrar o desejo de viver'
Eu penso isso também para o ensino superior, a universidade. Nós estamos sempre às voltas com estudantes com deficiência na graduação, na pós, em orientações. E nós percebemos que, quando docentes e discentes com deficiência estão abertos ao diálogo, quando entendem que é preciso um colaborar com outro – e quando não há tabu para falar sobre a deficiência –, as nossas colaborações são mais bem-sucedidas. É preciso falar sobre deficiências, sobre necessidades específicas, sobre as condições de saúde mental das pessoas com deficiência; nós só construiremos algo se esse diálogo efetivamente ocorrer.
De 2015, o ano em que defendeu sua tese, até hoje, houve conquistas ou perdas na causa da inclusão e no respeito às diferenças no Brasil?
Houve muitos ganhos. Um marco é a Lei Brasileira de Inclusão, que completará 10 anos em 2025. Nós temos vários avanços nos direitos, que eu chamo de direitos humanos, para as pessoas com deficiência em vários campos da educação, da comunicação, da informação, da saúde, do direito ao corpo. O Brasil tem uma legislação relativamente avançada, em comparação a outros países, e nós precisamos fazer essa legislação chegar ao cotidiano das pessoas com deficiência. A legislação está posta: ela tem algumas lacunas que podem ser melhoradas, mas nós precisamos fazer esse grande exercício que é pensar cidades mais acolhedoras do ponto de vista arquitetônico – precisamos de relações mais dialógicas e mais sinceras, sem tabus; precisamos nos colocar em conexão para que essa inclusão aconteça.
É necessário que haja o protagonismo das pessoas com deficiência. Muitas vezes elas estão cansadas, exaustas. Lidar com a entrada e a permanência na universidade, por exemplo, é um grande desafio, que vai do transporte às condições socioeconômicas e de aprendizagem. Eu já ouvi, muitas vezes, de pessoas com deficiência, que elas "não têm tempo" para participar de ativismos, de lutas. E eu sempre digo que um corpo com deficiência, por mais que isso possa doer, é um corpo político. Ele precisa agir politicamente. Eu tenho a experiência do meu filho, mas tantos outros colegas não têm experiência com deficiência. E se não houver conexão, no sentido de as pessoas com deficiência exercerem protagonismo e nos mostrarem como é que nós podemos caminhar juntos, fica tudo muito mais difícil.
Para terminarmos: para você, quem foi Pedro? E para nós, como quer que Pedro seja lembrado?
Pedro Pessoa Santos, era assim que ele se identificava, foi um garoto muito divertido, muito doce, mas muito firme em suas convicções, muito consciente dos seus direitos. Preocupado com situações de injustiça, às vezes ele até se metia em alguma confusão para defender alguém, para exigir alguma coisa, ele tinha um interesse muito especial pelas pessoas. Ele gostava de conversar, ele gostava de estar perto de pessoas, de se conectar com as pessoas. No livro há muitas frases dele, que eu anotei ao longo da vida, e essas frases são o prefácio. É como se o leitor pudesse, ao lê-las, ouvir um pouco do tom grave da voz dele. Ele tinha uma voz grave, firme, mas ao mesmo tempo doce, que parecia, às vezes, destoar do seu corpo gorduchinho e baixinho.
E como que eu quero que ele seja lembrado? Como uma criança comum que viveu intensamente, muito consciente dos desafios provocados pela hidrocefalia e das sequelas das cirurgias. Ele nunca se privou de viver; embora ele tivesse muitos questionamentos sobre algumas limitações, ele sempre refletia e pensava: "É importante a gente tentar". Eu acho que essa é a grande lição.
Por fim, há alguma frase, alguma 'potoca de Pedro', como você coloca no livro, que queira destacar?
O Pedro tinha umas tiradas. Uma vez ele me perguntou: "Mamãe, o que você faria se eu morresse? Você tem umas bobagens; não quer falar sobre a morte". Essa é uma que eu acho importante, porque a morte é um tabu. O luto é um tabu. As pessoas que não passam pelo luto ficam constrangidas perto de quem está passando. E outra é: "Mamãe, você precisa acreditar quando uma pessoa diz que quer, diz que consegue. A gente tem que dar uma chance às pessoas". Eu acho essa frase fantástica, porque foi dita por uma criança que lidava o tempo inteiro com essa dualidade, de conseguir e não conseguir. E, ao mesmo tempo, ele repetia: "Se eu quero, eu vou tentar, eu posso, e eu vou, talvez, conseguir".
Livro: Afetos de mãe: amor, morte e vida
Autora: Sônia Caldas Pessoa
Editora F4
335 páginas | R$ 40
Valor para pessoas com deficiência e estudantes: R$ 25