Opinião

Desafios para uma história do tempo presente no Brasil

Em artigo, professor da UFMG defende a participação do historiador no debate público, sem perder de vista o compromisso com as bases científicas da historiografia

Monumento em homenagem aos mortos e desaparecidos da ditadura militar brasileira instalado no Parque do Ibirapuera, em São Paulo
Monumento em homenagem aos mortos e desaparecidos da ditadura militar instalado no Parque do Ibirapuera, em São PauloEugenio Hansen OFS / Wikipédia / CC BY-SA 4.0

A história como saber é parte central dos embates políticos desde sua origem, pois faz parte da constituição política das nossas sociedades, ao fornecer representações formadoras de imaginários coletivos que instituem e dão legitimidade à comunidade política. Ela é fundamental para estruturar as identidades políticas de diferentes grupos sociais, sejam nações, classes, grupos religiosos ou movimentos sociais, e, ao mesmo tempo, pode oferecer inspiração para as escolhas políticas de tais grupos. Aí estão as razões pelas quais a história ocupa lugar central nas batalhas políticas presentes, sendo objeto de tantas disputas e manipulações por parte de quem pretende justificar seus projetos de poder. Por isso, os historiadores são constantemente chamados para o debate público.

A história e os historiadores estão, portanto, no olho do furacão. E especialmente a chamada História do Tempo Presente (HTP), no caso do Brasil, devido aos debates sobre a história da ditadura, que sempre foram politizados, mas assumiram enorme centralidade de 2014 para cá. Todos conhecem os usos da ditadura que vêm sendo feitos por autoridades públicas, desde o presidente do STF – que a qualificou como o “movimento de 1964” –, passando por ministros e chegando ao presidente (“esqueçam os historiadores”), todos negando o caráter ditatorial do regime político instalado em 1964.

A história está no centro da chamada guerra cultural, uma disputa em curso para hegemonizar a opinião política dos brasileiros. Para tornar seus pontos de vista dominantes no cenário público, alguns grupos de direita atuam para divulgar concepções sobre a história de acordo com seus valores, o que passa, por exemplo, pela demonização da esquerda e pela exaltação ou defesa dos feitos do regime militar.

Há iniciativas sistemáticas de grupos de direita para construir representações da história que recuperam perspectivas tradicionais de inspiração conservadora. Não se trata apenas de HTP, mas também de temas clássicos como a colonização do Brasil e a escravidão, fenômenos que as lideranças e intelectuais de direita pretendem mostrar como processos sem conflito e violência. Mas a história recente assume um lugar especial em razão do desejo de condenar a esquerda e defender a ditadura militar, que serve para justificar os projetos no comando do país. Essas iniciativas passam por ataques contra o conhecimento acadêmico, acusado de ser esquerdista, o que, aliás, se conecta a discursos anticientíficos de direita, e pela produção de filmes (como os da produtora Brasil Paralelo) e livros que contam a história sob uma perspectiva conservadora/liberal. Em casos mais agudos, tais discursos chegam próximo ao negacionismo.

A história está no centro da chamada guerra cultural, uma disputa em curso para hegemonizar a opinião política dos brasileiros.

A atual crise sanitária tem gerado impacto interessante para os meios universitários e científicos, com a revalorização do conhecimento acadêmico após anos de ataques, inclusive na imprensa tradicional e não apenas nas redes de direita radical. Os mesmos jornais que há pouco apoiavam corte de verbas hoje demandam o contrário. A ciência e o saber acadêmico voltam a ser valorizados. Isso pode trazer impactos também na nossa área, aumentando a credibilidade social da historiografia acadêmica frente aos ataques terraplanistas de direita.

Mas qual a utilidade do conhecimento histórico para analisar e compreender o quadro atual? O historiador pode falar do presente? Como ficam a objetividade e o distanciamento?

Em relação à construção de análises sobre o quadro atual, nossa profissão tem vantagens e desvantagens. Vejo uma vantagem em especial: a bagagem de conhecimento mais amplo sobre os contextos econômicos e políticos anteriores, que possibilita uma análise em perspectiva temporal, uma mirada de abrangência maior capaz de perceber conexões estruturais. Os bons analistas políticos conhecem bem a história, que é indispensável ao trabalho de traçar cenários e fazer prognósticos, geralmente baseados em conhecimento sobre as decisões tomadas no passado. As crises anteriores nos dizem muito, embora as atuais tenham peculiaridades bem próprias.

Quanto ao tema da objetividade, já foi demonstrado que não existe objetividade pura, no sentido de separação completa entre o sujeito do conhecimento (o pesquisador) e o seu objeto-tema de investigação. O modelo objetivista tem sido refutado até nas ciências naturais, que dirá nas ciências humanas! Todo pesquisador é influenciado por seu contexto social e impactado por seus interesses. O comprometimento com as questões do seu tempo é parte inerente do trabalho do historiador, e sem esse comprometimento a historiografia perderia sentido e relevância. Trata-se de buscar uma forma de objetividade construtiva, que demanda a incorporação consciente da sua própria subjetividade de maneira produtiva. Mas deve-se também almejar um conhecimento válido para além das próprias posições, valores e interesses, o que implica levar em conta outras subjetividades e identidades. Daí a importância de considerar diferentes informações e opiniões disponíveis sobre o objeto em análise, inclusive e especialmente as que divergem do nosso ponto de vista.

Mas qual a utilidade do conhecimento histórico para analisar e compreender o quadro atual? O historiador pode falar do presente? Como ficam a objetividade e o distanciamento?

Considerando a história acadêmica, é momento de revalorizar nosso compromisso crítico com a historiografia moderna, que tem como pressupostos a pesquisa metódica, a reflexão teórica, a análise baseada em pressupostos lógico-racionais, o respeito às evidências e indícios e a busca da verdade. Isso não significa retornar ao “positivismo”, pois alguns pressupostos da historiografia metódica do século 19 estão superados, como a perspectiva linear sobre o fenômeno da temporalidade (conectada ao otimismo progressista), o eurocentrismo e o objetivismo cientificista. No entanto, seria equivocado questionar todo o legado dessa tradição, até porque fazem parte dos mesmos princípios modernos a valorização do debate crítico e a abertura a reflexões teóricas que renovam o campo e incorporam novos agentes históricos.

Essa discussão envolve, também, tema espinhoso e complexo: a verdade. Por muito tempo, os historiadores tiveram alergia a essa palavra, por medo de ser acusados de positivistas. Mas, em tempo de fake news e mentiras grotescas, precisamos repensar essa questão. Acreditar que nenhuma verdade é realmente alcançável pelo conhecimento histórico significaria, no limite, admitir que todas as versões podem ser igualmente aceitáveis. Se assim fosse, não poderíamos estabelecer, por exemplo, quem tem razão no debate sobre tortura na ditadura. É claro que haveria várias nuanças nessa discussão, assim como conflitos de interpretação difíceis de resolver e que não admitem qualquer pretensão ingênua a verdades absolutas. No entanto, podemos estabelecer verdades básicas, simplórias talvez, mas que adquirem significado especial nos dias atuais. Não uma pretensão à verdade absoluta do tipo “narrar exatamente como se passaram os eventos”, mas, ao menos, a de estabelecer traços essenciais de certos eventos e processos. Uma verdade provisória, portanto, referenciada no conhecimento que se pode estabelecer hoje.

Diferentemente do autor de textos de ficção, o historiador tem um pacto cognitivo com seu leitor que se sustenta no convencimento pela prova. Ele tem de apresentar indícios e evidências que atestem a veracidade das suas afirmações, que precisam ser verificadas e comprovadas. Esse contrato/pacto da história com a verdade nunca foi tão válido. Com base em evidências documentais e nos rastros deixados pela experiência humana no tempo, é possível, sim, estabelecer asserções verídicas. Não se trata de pensar a verdade em termos absolutos ou transcendentes, terreno que implica mais a fé do que a razão. Tampouco trata-se da verdade dogmática, pois a verdade do historiador é provisória, sujeita à revisão; ainda assim, a sua validade é garantida por estar referenciada em evidências empíricas. A possibilidade de estabelecer asserções verdadeiras implica, necessariamente, a certeza de poder refutar certas mentiras. Mas, reiterando, para além do estabelecimento de verdades factuais ou empíricas, a busca por explicações ou pela construção de sentidos traz desafios mais complexos, naturalmente sujeitos a polêmicas e debates. Mesmo assim, essas polêmicas podem ser travadas em terreno firme, em que os referentes estejam bem estabelecidos, o que tornaria certas análises mais aceitáveis ou densas que outras. As interpretações sobre o passado não têm o mesmo valor.

É tempo de reafirmar os princípios do conhecimento histórico acadêmico, que exigem não apenas a necessidade de evidências, mas também a defesa de procedimentos críticos lógico-racionais e o debate intersubjetivo como bases para o estabelecimento de representações com pretensão à verdade. Tanto pela convicção filosófica de que se trata da posição correta, como, também, porque se aceitássemos a outra opção, segundo a qual a verdade corresponde exclusivamente aos interesses e visões de mundo de cada grupo, o caminho estaria aberto para a imposição mais tranquila da versão dos poderosos. Não se pode debater contra os discursos negacionistas e nostálgicos da ditadura acreditando na tese de que a história não pode estabelecer verdades – dessa forma já entraríamos derrotados. A resposta cética de que a história não pode estabelecer verdades não é alentadora, tanto por sua insuficiência do ponto de vista científico, quanto pela ineficácia do ponto de vista político. Para debater com esses grupos, não dispomos de nada melhor do que o aparato crítico-científico da historiografia, uma vez que a "verdade" apresentada por certos autores é puro sofisma, ou seja, um arrazoado retórico para simular a verdade.

Outro impacto das crises atuais sobre a historiografia pode ser a revalorização da história social frente à história cultural. Não me refiro à história de movimentos sociais, mas a uma história dedicada ao estudo das ações humanas no tempo. E uso história cultural no sentido de história de representações, do imaginário etc. Refiro-me a um tipo específico de história culturalista, a que estuda “representações”, “discursos” ou “imagens” de maneira autorreferenciada, ou seja, sem preocupação com a realidade externa a essas representações, como se ela não existisse ou fosse por princípio inalcançável. Ao contrário, importa prestar atenção à realidade referencial, seja para mostrar que algumas representações são falsas, seja para indicar aquelas mais verídicas conforme os indícios documentais. Mostrar o caráter falso ou equivocado de certas representações é fundamental, pois elas podem ter grande impacto na construção da realidade social.

É momento de revalorizar nosso compromisso crítico com a historiografia moderna, que tem como pressupostos a pesquisa metódica, a reflexão teórica, a análise baseada em pressupostos lógico-racionais, o respeito às evidências e indícios e a busca da verdade.

É claro que toda história é uma representação, pois não temos acesso direto ao nosso objeto de pesquisa. O ponto é que algumas pesquisas constroem representações sobre representações (por exemplo, o imaginário e as ideias), enquanto a história social constrói representações sobre as ações humanas e os processos sociais. Não estou propondo a existência de dicotomias simples, até porque faço pesquisas na interseção da história social com a história cultural. Mas o fato é que a história social pode vir a se fortalecer nesse contexto, em que precisamos buscar a realidade contra a ilusão e o falseamento. Precisamos resgatar o realismo, mas um realismo crítico, atento a todo tipo de exagero e mistificação, inclusive no campo da ciência. Vacinado, portanto, contra o cientificismo.

É indispensável a participação dos historiadores no debate público. Eles devem assumir um compromisso ético e cívico. Isso, no entanto, não significa abraçar bandeiras partidárias, mas, sim, causas mais amplas, como liberdade de expressão e a democracia, o que significa defender a própria existência de uma historiografia independente. Neste contexto em que corremos risco de ascensão de uma ditadura ou regime autoritário semelhante, ausentar-se do debate público é quase um suicídio profissional – salvo para os alinhados à direita radical. Assim, ausentar-se dos debates seria também um risco. Mas há outros riscos, como os de censura e perseguições políticas, que, aliás, já foram ensaiadas.

Engajamento não implica necessariamente a luta política clássica, mas certamente o debate com os grupos de direita que buscam dominar o conhecimento histórico. Não se trata de hostilizá-los, mas de mostrar suas fragilidades e contradições e o viés ideológico que os leva a discursos históricos falseadores. Isso deve ser feito com o uso de ferramentas da historiografia moderna. Aliás, outro risco que corremos é o de ter nossos textos apropriados por construções sobre a história que distorcem as evidências e violentam a lógica.

Por fim, há o risco decorrente do excesso de politização orientada para causas democráticas e progressistas. Às vezes, os imperativos cívico-políticos podem gerar ações contraditórias em relação aos compromissos críticos e éticos da historiografia acadêmica. O compromisso com as questões do seu tempo é parte inerente do trabalho do historiador, sem o qual a historiografia perderia sentido e relevância. No entanto, não se deve abrir mão de preceitos sem os quais nos tornaríamos produtores de uma historiografia de alcance limitado. É importante almejar um conhecimento válido para além das próprias posições, valores e interesses, o que implica levar em conta outras subjetividades e identidades. E evitar o perigo de forçar as evidências e argumentos para comprovar os próprios pontos de vista, deixando de levar em conta visões contrárias. O ativismo em excesso pode ser problemático e, no limite, poderia reduzir a credibilidade pública da historiografia.

É necessário buscar um equilíbrio entre a defesa de certos valores cívicos e éticos e o respeito aos pressupostos científicos da historiografia. É uma meta muito difícil em época como esta, tão politizada e radicalizada. Mas não podemos desistir, sob pena de pôr em risco os fundamentos básicos da historiografia acadêmica.

[Artigo produzido com base em apresentação feita pelo autor na mesa-redonda virtual da série Questões para a história do tempo presente em tempos pandemônicos, promovida, no último dia 4, pelo Laboratório de História do Tempo Presente da UFMG]

Rodrigo Patto Sá Motta / professor do Departamento de História da Fafich