[Opinião] Educação e letramento racial
Em artigo, o professor Marcos Fabrício Lopes da Silva afirma que conhecer as histórias e as culturas africana e afro-brasileira é importante para combater a desigualdade e a discriminação
A antropóloga afro-americana France Winddance Twine formulou o conceito de racial literacy, traduzido pela psicóloga e pesquisadora Lia Vainer Schucman como “letramento racial”. O letramento racial é uma forma de responder individualmente às tensões raciais. Ao lado de respostas coletivas, na forma de cotas e políticas públicas, ele busca reeducar o indivíduo em uma perspectiva antirracista. A ideia subjacente é a de que quase todo branco é racista, mesmo que não queira, porque o racismo é um dado estrutural de nossa formação social. Explica Schucman que o letramento racial é um conjunto de práticas, baseado em cinco fundamentos.
O primeiro é o reconhecimento da branquitude. O indivíduo reconhece que a condição de branco lhe confere privilégios. O segundo é o entendimento de que o racismo é um problema atual, e não apenas um legado histórico. Esse legado histórico se legitima e se reproduz todos os dias e, se não for vigilante, o indivíduo acabará contribuindo para essa legitimação e reprodução. O terceiro é o entendimento de que as identidades raciais são aprendidas. Elas são o resultado de práticas sociais. O quarto é se apropriar de uma gramática e de um vocabulário racial. O quinto é a capacidade de interpretar os códigos e práticas “racializadas”.
Letrar é mais que alfabetizar, é ensinar a ler e escrever dentro de um contexto em que a escrita e a leitura tenham sentido e façam parte da vida dos aprendizes, não apenas no ambiente escolar, mas também fora dele. A educação antirracista e a teoria racial crítica fazem parte do rol das abordagens de pesquisas críticas cujo escopo consiste em entender a intrínseca relação entre discurso e práticas sociais. Isso se aplica, mais especificamente, à produção e à reprodução do poder, à ideologia, à dominação simbólica e à construção de estereótipos relacionados à composição do outro. No processo educativo, reconhecer as múltiplas interpretações preconceituosas sobre a forma como o outro é construído pelo discurso, nas relações de poder e ideologia, e como essas diferenças são usadas na construção de ordem de superioridade, inferioridade, inclusão, exclusão dos atores sociais, de acordo com o nosso entendimento, é um primeiro passo para uma educação mais humana.
A educação antirracista e a teoria racial crítica fazem parte do rol das abordagens de pesquisas críticas cujo escopo consiste em entender a intrínseca relação entre discurso e práticas sociais.
Conhecer as histórias e as culturas africana e afro-brasileira não é apenas uma obrigação imposta por força de lei. É importante para combater a desigualdade, a discriminação e para compreender verdadeiramente a história e a cultura brasileiras. Assim, acumulamos forças para a formação de uma sociedade justa, igualitária e fraterna, livre de toda forma de preconceito, discriminação e opressão, independentemente de cultura, religião, raça e etnia, gênero e orientação sexual. O racismo é crime no Brasil, previsto pela Constituição Federal de 1988, nos termos do Artigo 5º, Inciso XLII. “A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”, diz o texto.
No contexto brasileiro, pesquisa feita por Maria Aparecida S. Bento (Branqueamento e branquitude no Brasil, 2011, on-line) menciona que muito se fala sobre o negro, mas pouco sobre o branco. Segundo a pesquisadora, “evitar focalizar o branco é evitar discutir as diferentes dimensões do privilégio. Mesmo em situação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da brancura, o que não é pouca coisa. Assim, tentar diluir o debate sobre raça analisando apenas a classe social é uma saída de emergência permanentemente utilizada, embora todos os mapas que comparem a situação de trabalhadores negros e brancos, nos últimos vinte anos, explicitem que, entre os explorados, entre os pobres, os negros encontram um déficit muito maior em todas as dimensões da vida, na saúde, na educação, no trabalho. A pobreza tem cor, qualquer brasileiro minimamente informado foi exposto a essa afirmação, mas não é conveniente considerá-la. Assim o jargão repetitivo é que o problema limita-se à classe social. Com certeza esse dado é importante, mas não é só isso”.
O racismo é a raça hierarquizada. A branquitude é sempre um lugar de vantagem do branco em sociedades estruturadas pelo racismo, ou seja, todas aquelas colonizadas pelos europeus, porque a ideia de superioridade surge ali e se espalha via colonização. Dessa forma, consideram universais as definições vindas da branquitude. O que chamamos de história geral, por exemplo, deveria ser chamada de história branco-europeia. Não à toa, o letramento racial crítico obriga-nos a repensar raça como um instrumento de controle social, geográfico e econômico de ambos: brancos e negros. Existe, logo, a necessidade de um letramento racial, para reeducar o indivíduo em uma perspectiva antirracista, baseado em fundamentos como o reconhecimento de privilégios e do racismo como problema social atual, não apenas como legado histórico. Nesse sentido, a consciência negra se expressa com alteridade no campo da cidadania, conforme atesta Oswaldo de Camargo, em seu fabuloso poema Em maio, publicado no livro O estranho, de 1984:
“Já não há mais razão para chamar as lembranças/e mostrá-las ao povo/em maio./Em maio sopram ventos desatados/por mãos de mando, turvam o sentido/do que sonhamos./Em maio uma tal senhora Liberdade se alvoroça/e desce às praças das bocas entreabertas/e começa:/‘Outrora, nas senzalas, os senhores...’/Mas a Liberdade que desce à praça/nos meados de maio,/pedindo rumores,/é uma senhora esquálida, seca, desvalida/e nada sabe de nossa vida./A Liberdade que sei é uma menina sem jeito,/vem montada no ombro dos moleques/ou se esconde/no peito, em fogo, dos que jamais irão/à praça./Na praça estão os fracos, os velhos, os decadentes/e seu grito: ‘Ó bendita Liberdade!’/E ela sorri e se orgulha, de verdade,/do muito que tem feito!”
Artigo originalmente publicado na edição 2081 do Boletim UFMG.