Opinião

Educação jurídica no ensino básico e atuação política

Professoras e advogado refletem sobre proposta de lei municipal que nasceu de projetos da Faculdade de Direito focados em direitos humanos e acesso à justiça

Os desafios do ensino básico para formar brasileiros capacitados são notórios, especialmente quando deparamos com indicadores quanti-qualitativos e mercadológicos. Todavia, o desafio oculto que mais assombra e impede o pleno desenvolvimento do ensino básico talvez seja a ausência de atenção política para construção de diretrizes e mecanismos que visam à formação para a verdadeira cidadania cultural.

Esse tem sido um desafio constante de diversos profissionais da educação que diariamente transformam esforço hercúleo em construção singela desse sonho-objetivo oculto nos indicadores, que tem entre seus pilares a formação jurídica e cidadã dos estudantes desde os ciclos básicos.

Em 2020, esse pilar tão concreto para a construção de um ensino básico formador de cidadãos tomou corpo por meio da proposição de lei 36/2020, que visa instituir noções de empreendedorismo e direito no ensino básico de Belo Horizonte. A proposta foi aprovada em dois turnos pela Câmara Municipal e enviada ao prefeito Alexandre Kalil (PSD).

O projeto de lei, que tramita desde 2017 no parlamento belo-horizontino, integra as agendas de extensão universitária da Faculdade de Direito da UFMG desde 2008, em especial dos programas de ensino, pesquisa e extensão Paideia jurídica – Educação em direitos humanos fundamentais e Recaj – Acesso à justiça e solução de conflitos.

O trabalho de pesquisa e de atuações em escolas municipais e estaduais deixa suas marcas consolidadas para inspirar, enfim, a proposição de lei encaminhada ao prefeito em 16 de junho. Esse fato, que representa um divisor de águas entre o trabalho acadêmico e a efetivação dos seus resultados como política pública, pode inspirar outros municípios e estados do país. Trata-se da consolidação do esforço conjunto entre a universidade pública, a sociedade civil e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que também confere efetividade a esse projeto acadêmico por meio de sua comissão OAB na Escola, constituída para auxiliar a implementação da educação em direitos no município de Belo Horizonte.

Esse fato, que representa um divisor de águas entre o trabalho acadêmico e a efetivação dos seus resultados como política pública, pode inspirar outros municípios e estados do país.

É uma iniciativa modelar que busca subsidiar a inserção de conteúdos jurídicos nos currículos escolares a fim de que o ensino do Direito seja ferramenta de empoderamento sobre os direitos fundamentais e os valores constitucionais, possibilitadores da oxigenação e atualização (tardia, diga-se de passagem) dos currículos tradicionais das escolas, ainda presos às amarras escolásticas do ensino arquitetado segundo padrões do século 19. Eles ainda são caracterizados por excessivo apelo a conteúdos padronizados nas formas de cálculos e decorebas de fórmulas diversas, que em nada se prestam a autonomizar os sujeitos deste século, marcado por intensa diversidade e mobilidade cultural e acesso irrestrito às formas de aprendizado paralelas possibilitadas pela tecnologia da informação, e que traz como desafio às novas gerações o enfrentamento da disrupção tecnológica e o colapso ecológico. Os currículos escolares estão longe de abordar questões afetas a essa nova forma de vida estudantil, mantendo estruturas e conteúdos arcaicos por pura acomodação e reverência à tradição, sem exercício crítico comprometido com os desafios e demandas deste início de século.

Em que pese os currículos de referência (estaduais e municipais) tragam breves menções sobre o ensino de conteúdo jurídico no ensino básico, elas se destinam apenas a cumprir formalmente as previsões da Lei 13.005/2014, que instituiu o Plano Nacional de Educação (PNE), que enuncia como uma de suas diretrizes a promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos. Mas o que significa concretamente respeitar direitos humanos nas práticas cotidianas da sala de aula? Na verdade, a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), responsável por parametrizar o ensino básico brasileiro, não traz, em seu escopo, dispositivos e orientações para a educação em direitos com vistas à emancipação dos estudantes-cidadãos que compõem o sistema público de educação no Brasil.

Atividade do projeto Recaj nas escolas, em Nova Serrana, em 2012: mediação de conflitos
Atividade do projeto 'Recaj nas escolas', em Nova Serrana, em 2012: mediação de conflitos Recaj UFMG / Facebook

Uma das formas de preencher essa lacuna vem sendo pensada pelos integrantes do projeto Paideia Jurídica, desenvolvido há mais de duas décadas na Faculdade de Direito da UFMG. A iniciativa propõe-se desde o início a ofertar diversos cursos de formação de professores em direitos humanos e noções gerais de direito, tanto no formato presencial quanto na modalidade de educação a distância (EAD). Além de ter oferecido aos professores do ensino básico a mesma formação jurídica tipicamente praticada nas faculdades de direito em vários municípios de Minas e na capital, o projeto possibilitou diversas pesquisas em parceria com a Faculdade de Educação da UFMG, que propuseram metodologia diferenciada sobre a educação em direitos humanos, estruturada segundo os conteúdos próprios do Direito e as intervenções e práticas metodológicas próprias da Pedagogia. 

Com base nessas pesquisas, foram publicados livros sobre diálogos possíveis entre pedagogia e direito, que indicam conteúdos e métodos compatíveis com sua inserção na grade curricular tradicional das escolas. Soma-se a essa produção, a construção de capital acadêmico para subsidiar suas conclusões e encaminhamentos na orientação de teses e dissertações sobre o recorte temático transversal entre Pedagogia e Direito – nesse sentido, vale destacar a tese Pelo direito de educar-se em direitos humanos, de autoria de João Batista de Campos Rocha e defendida no Programa de Pós-graduação em Direito da UFMG. O trabalho foi publicado como livro sob o título Ensino dos direitos humanos: o equívoco da educação.

As múltiplas experiências de extensão universitária possibilitaram trazer alunos da educação básica para cursos na Faculdade de Direito da UFMG, formando amostragem sobre como poderiam ser ensinados conteúdos jurídicos nas escolas de educação básica, calcados tanto nos fundamentos transversais entre Direito e Pedagogia proposto pelo projeto Paideia jurídica quanto nas práticas do projeto Recaj nas escolas, que já produziu cartilhas voltadas para o público infanto-juvenil sobre mediação de conflitos e bullying e um jogo denominado Fala, jovem, sobre emancipação de direitos voltado para o público adolescente, além de ter realizado capacitações com centenas de jovens sobre educação em direitos humanos.

Cidadãos que não conhecem os seus direitos e não se empoderam deles são facilmente manipulados pelas formas degeneradas da política, o que restou demonstrado na recente triste história do Brasil.

Vários estudantes mineiros já fizeram parte da história dos projetos de extensão universitária que buscaram e ainda prospectam formas de levar a educação em direitos para o ensino básico brasileiro. Ainda à espera da apreciação do projeto de lei pelo chefe do executivo belo-horizontino, há de se apontar não apenas as ações da Faculdade de Direito da UFMG e seus projetos de extensão, mas a frutificação das teses construídas com fôlego acadêmico e o esmero de dezenas de pesquisadores neles envolvidos, movidos pela certeza de que não há exercício da cidadania sem o conhecimento de nossos direitos fundamentais. Pelo contrário, cidadãos que não conhecem os seus direitos e não se empoderam deles são facilmente manipulados pelas formas degeneradas da política, o que restou demonstrado na recente triste história do Brasil. 

Há 14 anos, a ideia de inserção dos conteúdos de direitos fundamentais e valores constitucionais é defendida academicamente na UFMG, e, em que pese as pesquisas e atividades extensionistas não terem espaço dialógico com as políticas públicas municipais oficiais, o ideal semeado na Faculdade de Direito floresceu, o que significa que estávamos no caminho certo e não sonhávamos sozinhos. 

Esperamos que essa proposta se torne lei municipal efetivamente cumprida e que o município possa se somar à universidade pública na construção de um espaço de educação efetivamente transformador e emancipatório.

Mariah Brochado, professora da Faculdade de Direito da UFMG, doutora em Direito, com pós-doutorado em Filosofia pela Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha

Adriana Goulart de Sena Orsini, professora da Faculdade de Direito da UFMG, Desembargadora do TRT-3, doutora em Direito, com pós-doutorado em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas pelo Centro Universitário do Distrito Federal, Brasília

Lucas Magno Oliveira Porto, especialista em Direito Processual e bacharel em Direito pela UFMG. Advogado e Assessor de Controle Interno na Controladoria Setorial da Secretaria de Educação de Minas Gerais

Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 29/6/2020