Internacional

Interesses econômicos não podem se sobrepor ao destino da vida, defende Pepe Mujica

Em evento com jovens organizado pela AUGM, ex-presidente do Uruguai pediu a retomada do espírito gregário para construção de um futuro mais solidário

Pepe Mujica: superação da
Pepe Mujica: superação da "crise cultural colaborativa" na América Latina Foto: Reprodução | TV Ciudad

Com críticas ao consumismo e ao acúmulo de riquezas, o ex-presidente uruguaio José "Pepe" Mujica conclamou os jovens e trabalhadores latino-americanos e caribenhos a não trair a si mesmos e optar por um caminho de construção de um mundo melhor e mais solidário. “A grande pergunta, hoje, é esta: os interesses econômicos são mais fortes que o destino da vida? Faz sentido [se engajar em] uma luta econômica, às custas do sacrifício da vida? Será que a ambição vai nos castigar?”, questionou o líder sul-americano, durante palestra no auditório da Universidade da República (Udelar), em Montevidéu, capital do Uruguai. Intitulado Fazer futuro (ou Hacer futuro, no espanhol), o evento, organizado pela Associação das Universidades do Grupo Montevidéu (AUGM) e outras organizações, foi transmitido pelo YouTube.

Ao explorar suas próprias experiências, da juventude à maturidade, Mujica conclamou os presentes e demais espectadores a “fugir do risco de traírem a si mesmos.” “Os humanos são os únicos animais que têm certa margem para incidir sobre o rumo das suas vidas, alterando-o. Vocês podem passar a vida toda pagando prestações ou podem utilizar uma parte do tempo de vida que têm para resgatar o melhor deste mundo e deixar para aqueles que virão um mundo melhor do que vocês têm hoje para viver”, instigou o ex-presidente do Uruguai.

Na sequência, Mujica passou a indicar as contradições da sociedade atual. “O avanço desta civilização foi maravilhoso. Atualmente, nós vivemos mais anos [que os nossos antepassados]. Há hoje uma multidão de pessoas que vivem muito melhor do que se vivia há 50 ou 100 anos. Há também muito progresso e muitas possibilidades. Mas, como contrapartida, temos uma concentração de poder e riqueza que dói”, denunciou.

Na visão de Mujica, “a humanidade se transformou num brutal fenômeno geológico, que incide na harmonia da natureza e da terra que nos cerca”. Por isso, segundo ele, é urgente que os jovens percebam que o tempo de vida que têm pela frente representa, por um lado, uma “promessa formidável”, proporcionada também pelos avanços conquistados graças à tecnologia. 

“Paralelamente, é uma era cheia de incertezas, porque a mudança climática já chegou. Não é que ela virá. Ela já chegou e não tem fronteiras. Os vírus não têm fronteira, o capital financeiro não tem fronteiras, as milhões de pessoas que migram pelo mundo não têm fronteiras e estão em busca de esperança. Ao mesmo tempo, nunca tivemos tanta riqueza, nunca a humanidade teve tanta força e conhecimento, ou seja, essa civilização apresenta muitas contradições”, afirmou.

Pandemia e desigualdade
Em sua fala aos jovens latino-americanos, Pepe Mujica não deixou de tratar da pandemia e dos efeitos desse período na história do mundo e, especialmente, da América Latina e do Caribe. Logo de início, o ex-presidente uruguaio destacou a alta proporção de mortes nessa parcela do continente americano. 

“Apesar de sermos apenas pouco mais de 7% da população do mundo, nosso continente computou 30% das mortes por covid-19 registradas em todo o mundo. Ao mesmo tempo, enquanto a nossa população morria, o conhecimento acumulado sobre a produção das vacinas foi tratado pelo mundo como uma propriedade. Mesmo assim, não houve sequer uma conferência entre os chanceleres da nossa América Latina para tomar um posicionamento continental acerca da pandemia”, afirmou.

Segundo Mujica, essas questões demonstram a “crise cultural colaborativa” que temos hoje na América Latina. “Isso é inadmissível e deve ser visto como um exemplo. Sou um ancião que vem rogar a vocês pelo porvir e pedir aos jovens deste continente que assumam a causa de unir os nossos interesses para que possamos nos defender e criar uma cultura que não impeça o nosso desenvolvimento”, disse. 

O uruguaio também fez questão de denunciar aquele que, para ele, é o “grande paradoxo” do mundo pós-pandemia: “Na crise gerada pela pandemia global da covid-19, a cúspide de acumulação de riquezas na sociedade aumentou. A despeito da pandemia, há mais bilionários neste mundo atual”, denunciou.

Retomada do sentido gregário
Por meio do resgate de características das antigas espécies humanas, como a tendência de viver em bando, que possibilitou a expansão humana e a ocupação de territórios, Pepe Mujica convidou os jovens latino-americanos e caribenhos a retomar “o sentido gregário, esse sentido da espécie à qual pertencemos, que permitiu aos homens e mulheres primitivos a povoar a Terra”.

“Precisamos perceber que os outros somos nós e que somos os outros e, juntos, temos que enfrentar o porvir, para tentar melhorá-lo e dar respostas a uma série de problemas, que têm respostas teóricas às quais não podemos nos deter. Faz mais de 30 anos que os homens disseram que os fenômenos naturais adversos seriam cada vez mais intensos e continuariam se agravando. Ainda assim, a política falhou ao não transformar a mensagem da ciência em decisões, por não querer enfrentar os grandes interesses que era necessário encarar”, disse Mujica.

AUGM e integração regional

Sandra Goulart: integração regional
Sandra Goulart: integração inspirou criação da AUGMFoto: Reprodução | TV Ciudad

Presidente da AUGM, a reitora da UFMG, Sandra Regina Goulart Almeida, que compôs a mesa do evento ao lado de Pepe Mujica e outras autoridades, afirmou que o ex-presidente uruguaio tem sido, ao longo dos últimos anos, “uma grande inspiração para todos”. “Nos últimos anos, que foram duros no Brasil, durante o governo Bolsonaro, a gente ouvia as palavras do Pepe Mujica e se inspirava, na esperança de dias melhores, que acreditávamos que teríamos pela frente”, ela disse. 

Segundo Sandra Goulart, a integração regional – conceito que norteou a exposição de Pepe Mujica – foi a maior inspiração para a criação da AUGM, entidade que tem 32 anos de atividades. “Continua sendo, para nós, um grande sonho, um grande desejo. Estamos numa luta constante pela integração regional. Desde a fundação da Associação, em 1991, temos feito o que podemos fazer para que a AUGM exerça um papel importante na integração da América Latina”, destacou.

Hugo Rafael