Pesquisa e Inovação

Matemática e Inteligência Artificial: amigas invisíveis

Centro de Inovação em Inteligência Artificial para a Saúde da UFMG faz uso prático da matemática

Matemática é mais presente no dia a dia do que se pensa
Matemática é mais presente no dia a dia do que se pensa Adobe Stock

Nas salas de aula por todo o país, crianças e adolescentes contam com uma companhia diária dentro e fora da escola. Ela está presente até quando eles não imaginam, mas quando imaginam, não é todo mundo que gosta. Tem até quem diga sem cerimônia que a odeia. Outros confessam que amam. Gostando ou não, a verdade é que ela é essencial para quase tudo o que fazemos e usamos. Ainda mais em um mundo altamente conectado como o atual. Com a palavra quem convive de perto com ela e estudantes.

Para a estudante do ensino fundamental, Cecília Martins, 8 anos, a matemática é uma alegria: “A matemática me deixa feliz. Fico muito feliz quando tiro total nas provas”. Por sua vez, a estudante do ensino média, Maria Eduarda Barakat, 17 anos, tem outra vivência com a disciplina: “Meu sentimento por matemática eu diria que é desgosto mesmo”.

Mesmo causando desgosto em alguns, a matemática é uma amiga invisível. Invisível porque ela é muitas vezes resumida ao meme “Mais um dia sem usar a fórmula de Bhaskara”, compartilhado nas redes sociais como se não a utilizássemos sempre. Entretanto, ela é essencial. Amiga porque é parte fundamental para a construção das casas nas quais moramos, para cozinhar os alimentos que comemos e até para que agora você possa ouvir a esta reportagem. Isso só para ficar em poucos exemplos. Apesar de importante, a relação da matemática com as pessoas é complicada. A disciplina é a mais difícil para estudantes do ensino médio brasileiro. De acordo com a avaliação da educação no país, realizada pelo Censo Escolar em 2021. Para a presidenta da Sociedade Brasileira de Matemática, Jaqueline Godoy Mesquita, a matemática nos ajuda até a pensar melhor.

IA e matemática

Segundo Jaqueline, “Apesar de muitas vezes, quando a gente aprende a matemática em sala de aula, ela não ser apresentada de uma forma divertida ou de uma forma mais ligada ao nosso cotidiano. Quando você se desenvolve mais no conhecimento matemático, você também melhora o seu argumento lógico dedutivo. Você também tem uma parte mais crítica nessa. Nesse lado, um olhar, uma visão mais crítica com relação a várias situações. Devido a isso, esse aprimoramento do raciocínio lógico dedutivo, Isso vai ser muito importante, independente da área que você vá atuar”.

Formada em Ciências com Habilitação em Matemática, a professora do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo, a USP Solange Resende, estuda a inteligência artificial há 39 anos. Se engana quem pensa que a inteligência artificial seja algo recente. A tecnologia surgiu em 1943 com a criação do primeiro modelo computacional para redes neurais. O termo inteligência artificial veio alguns anos depois, em 1956. E por falar em matemática, fazendo aqui uma conta rápida, a IA  completou 81 anos. A filha mais nova da IA é a inteligência generativa, a revolucionária dos últimos anos, capaz de gerar textos, imagens, vídeos e áudios. De acordo com a professora Solange, a IA não existiria sem a matemática : “Quem começou a trabalhar com inteligência artificial eram os matemáticos. Era o pensamento lógico, era a lógica para representar conhecimento que vinha da matemática. Então, a matemática foi fundamental nessa construção experimental. Porém, para a inteligência artificial, onde a gente constrói novas ferramentas usando o que a gente já tinha. Mas no desenvolvimento inicial da inteligência artificial, que permitiu chegar nos dias de hoje, ele foi um desenvolvimento muito fundamentado na matemática”.

Da mesma forma que a matemática, a inteligência artificial também é uma amiga por nos ajudar em muita coisa. É invisível porque às vezes nem percebemos que aí já está ali. A pesquisadora da USP nos ajuda a enxergar onde ela está: “Quando você vai ao supermercado, em geral, toda a disposição dos produtos nas prateleiras é baseada em um sistema de mineração de dados que escolhe os produtos que vão perto de quais produtos, porque se sabe que um produto interfere na compra ou não de um outro produto. Querendo você ou não, você hoje usa inteligência artificial, porque hoje a população, o índice de pessoas que tem um smartphone na mão é muito alto. No seu celular praticamente todos os aplicativos usam alguma coisa de inteligência artificial, alguma base de inteligência artificial no seu desenvolvimento. E eu acho que não tem nenhuma área mais nenhuma área que você não tenha alguma coisa. Inteligência artificial desenvolvida na área da saúde, enquanto sistemas a gente tem. É uma evolução enorme aí de sistemas de apoio à tomada de decisão na área de saúde”.

Inteligência artificial é uso aplicado da matemática e da computação
Inteligência artificial é uso aplicado da matemática e da computação Adobe Stock

CI-IA Saúde UFMG

É justamente a aplicação da inteligência artificial no campo da saúde um dos mais recentes destaques da Universidade Federal de Minas Gerais, o Centro de Inovação em Inteligência Artificial para a Saúde, o CI-IA Saúde UFMG. Contribuir com os profissionais de saúde para a melhoria na qualidade da assistência e do diagnóstico, para promover a qualidade de vida e a saúde das pessoas é o objetivo do Centro. Iniciado há dois anos, o espaço teve um investimento de R$5 milhões para o desenvolvimento dos primeiros 17 projetos. Os números impressionam: 180 pesquisadores, oito instituições de ciência, tecnologia e inovação são parceiras e quatro empresas de tecnologia e saúde. A relevância social também impacta. As pesquisas do CI-IA, divididas em quatro linhas, serão essenciais à vida humana: prevenção de doenças crônicas; telemonitoramento e tecnologias móveis; diagnóstico orientado por IA; medicina personalizada em oncologia; cirurgia guiada por IA; prevenção e mitigação de epidemias; integração de Bases de Dados do SUS e saúde suplementar.

Quem explica os trabalhos do CI-IA é um dos diretores do espaço. O professor da UFMG, Wagner Meira: “Primeiro que já havia, entre vários pesquisadores da computação e da área da saúde, projetos, trabalhos anteriores. No meu caso, tem 20 anos que eu trabalho com o pessoal da saúde e naturalmente, esse interesse pelo uso da inteligência artificial na saúde surgiu com toda essa efervescência da área de inteligência artificial. E a segunda razão é que o outro lado, o governo, reconhecendo aí a relevância e a importância potencial da inteligência artificial, publicou o edital para a constituição desses centros de pesquisa aplicada em Inteligência Artificial”.

Docente do Departamento de Computação do Instituto de Ciências Exatas da UFMG, o professor Wagner Meira explica como a matemática é essencial à inteligência artificial: “Por trás dos computadores e da inteligência artificial como um todo, nós temos modelos matemáticos variados e então é o nosso ponto de partida do que vai ser efetivamente implementado, do que vai ser entregue como tecnologia. É um modelo matemático e que, obviamente, os vários profissionais envolvidos nesse processo, se eles não são os projetistas, os inventores desses modelos, eles precisam entender bem e saber dominar, calibrar, implementar, usar bem esses modelos para que eles efetivamente funcionem. Então, aquele exercício da matemática de você olhar um problema real, modelá-lo matematicamente e, a partir dessa modelagem, achar uma solução para o problema É um dos exercícios mais ricos e desafiadores e que trazem a essência do raciocínio e do trabalho, da atuação não só da matemática, como também na computação e na inteligência artificial.

Projetos em desenvolvimento

Um dos projetos em desenvolvimento no CI-IA Saúde da UFMG é de autoria de uma das mais prestigiadas cientistas do Brasil, de acordo com rankings internacionais. A professora da Escola de Enfermagem da UFF MG, Débora Malta: “É um avanço no sentido de identificarmos áreas de maior risco dentro do espaço humano para ocorrência de doenças crônicas não transmissíveis. Então, nós estamos trabalhando em parceria com os colegas da ciência de Dados, do Departamento da Ciência da Computação e trabalhando nesses modelos de predição de áreas de risco. Vamos começar com Belo Horizonte. A ideia é que isso se expanda para o Brasil inteiro. A nossa hipótese é de que as áreas de maior risco social, de maior vulnerabilidade, elas terão taxas mais elevadas de doenças crônicas, ou seja, de doença cardiovascular, de câncer, de doença respiratória e diabetes, e também terão um acúmulo maior de fatores de risco. Então, de fato, a gente vai ter um retrato dessas áreas em Belo Horizonte e a concentração dos fatores de risco de doenças crônicas”.

Graduada em Medicina, Débora avalia a importância da matemática e da inteligência artificial e responde: quem faz medicina tem que saber matemática? “Claro, a matemática está presente em todas as áreas da saúde. Eu uso a matemática o tempo todo. Nós trabalhamos com cálculos para enfim, estimar as taxas a estimar os riscos da população. E são vários os exemplos que nós temos do uso e da aplicação da inteligência artificial. Eu citaria, por exemplo, laudos de eletrocardiograma, laudos de radiografias e de ultrassom, que, cada vez mais frequentemente, são dados por máquinas, para inclusive reduzir o tempo de laudo e agilizar as respostas em saúde”.

Outra pesquisa do CI-IA já está em fase de protótipo em um hospital público, o Hospital das Clínicas da UFMG. É o que explica o professor Wagner Meira: “Poderemos tem um profissional lá, a milhares de quilômetros , que fará o eletrocardiograma, ou seja, implanta os eletrodos, coleta os dados e manda o eletrocardiograma para a central aqui do Hospital das Clínicas. Na Central do Hospital das Clínicas, existe uma equipe de médicos que agora está testando a utilização de um algoritmo de um modelo de inteligência artificial para auxiliá-los nesse diagnóstico”.

No momento, novos projetos inscritos no CI-IA Saúde da UFMG estão em avaliação para serem desenvolvidos pelo Centro. Serão ainda mais avanços para a saúde humana, com o uso dos conhecimentos matemáticos e tecnológicos. 

Recado a estudantes

Cientes de que a matemática é a disciplina mais difícil para os estudantes brasileiros. Quais conselhos os nossos cientistas dariam a quem está aprendendo na sala de aula?

“Os médicos também usam a matemática e os enfermeiros também usam. A dona de casa usa a matemática e eu acho que a gente tem que transformar a matemática em conteúdos cada vez mais próximos do nosso cotidiano. Ela é muito importante e enfim, nós temos que buscar ter bons professores no ensino básico, no ensino fundamental, para que essa distância dos alunos com a matemática ela seja reduzida”
(Deborah Malta, Escola de Enfermagem - UFMG).

“A inteligência artificial e o uso dela em saúde, eles estão mais próximos do que esses estudantes imaginam e o caminho para alcança-los é a matemática. Então ela pode parecer algo distante e complicado nesse momento, mas na verdade é a partir dessa e desse trabalho, dessa discussão, é que a gente vai ser capaz de alcançar uma diversidade, uma amplitude e uma efetividade cada vez maior dessas tecnologias numa área tão relevante como é o caso da saúde”
(Wagner Meira, Departamento de Ciência da Computação – UFMG).

“Quando você estuda matemática, você desenvolve raciocínio. Então você capta as coisas muito mais rápido na sua vida adulta, inclusive em outras áreas. Eu posso me formar na área de humanas, mas esse raciocínio lógico ele me ajuda, ele me ajuda a estudar, ele me ajuda a tomar uma decisão mais rápida, porque existe uma lógica por trás de tudo isso. E esse aprendizado dessa lógica que vem por trás de tudo isso é tudo, vem da matemática”
(Solange Rezende, Instituto de Ciências Matemáticas e Computação – USP).

“Qualquer pesquisa que você faz no Google, você utiliza muita matemática também. As redes sociais usam muita matemática por trás. Então é muito importante a gente ter o desenvolvimento matemático da nossa comunidade como um todo, para que a gente possa também alcançar um desenvolvimento científico e tecnológico. Sabemos que vamos enfrentar no futuro próximo vários desafios globais, como já enfrentamos a questão da pandemia, também vimos a questão das emergências climáticas, como o que aconteceu no Rio Grande do Sul. E é muito importante que a gente tenha a matemática bem desenvolvida para que a gente possa usá la em nosso favor, para a gente poder tomar as melhores decisões. Quando a gente está em frente a um desafio desses”
(Jaqueline Godoy Mesquita – Sociedade Brasileira de Matemática).

Descobertas e vivências

Será que as estudantes Cecília Martins e Maria Eduarda Barakat gostaram de saber que a matemática é capaz de tudo isso? “Eu não consigo entender como tem gente que não gosta da matemática, mas eu nem sabia que a matemática era tão útil pra fazer várias coisas assim. E agora várias profissões precisam dela, né? Tipo a NASA! Agora eu sei que a matemática pode salvar a vida de uma pessoa também”, comemora Cecília. “Mesmo com essa descoberta que pode salvar vidas, eu acho muito importante salvar vidas, inclusive, mas eu vou continuar não gostando de matemática”, finaliza Maria Eduarda.

Parece que não dá para agradar a todos, mas ser útil a todas as pessoas, ainda que elas não saibam, dá sim. E é o que a matemática faz de melhor. A melhor amiga invisível da inteligência artificial, a matemática calcula quanto tempo ainda demora para ela ser também, melhor amiga visível de estudantes.


Ficha técnica

Produção e reportagem: Ruleandson do Carmo

Sonoplastia e edição de áudio: Luíza Glória

Pessoas entrevistadas: Deborah Malta (Escola de Enfermagem - UFMG), Jaqueline Godoy Mesquita (Sociedade Brasileira de Matemática), Wagner Meira (Departamento de Ciência da Computação / Centro de Inovação em Inteligência Artificial para a saúde - UFMG), Solange Rezende (USP), Cecília Martins (estudante), Maria Eduarda Barakat (estudante).

Ruleandson do Carmo