Montaigne, suas couves e a peste: uma filosofia da vulnerabilidade
'Doença' e 'morte' não são conceitos abstratos e gerais, mas experiências contextualizadas, sociais e pessoais, escreve Telma Birchal
A mesma frase pode expressar uma aberração moral ou uma grande verdade, dependendo do contexto no qual é dita e de quem a diz. Não vou me alongar a respeito da brutalidade manifesta na indiferença de um presidente – sobre o qual cai a responsabilidade de zelar para que cidadãs e cidadãos brasileiros vivam e vivam bem – quando expressou o lugar-comum “todos nós vamos morrer um dia”. Sobre a desigualdade e a injustiça encobertas, não por acaso, em tal enunciado, o excelente artigo Quem pode respirar, assinado por Paula Rita Bacelar Gonzaga, Cláudia Mayorga e Lisandra Espíndula Moreira e publicado neste Portal, é verdadeiro a ponto de deixar a leitora ou o leitor sem fôlego.
Quero aqui voltar a outro lugar-comum, que se relaciona ao já citado: o da filosofia como modo de vida ou ethos – um dos pontos fundamentais do bem viver é saber lidar com a morte. “Filosofar é aprender a morrer”, disse Platão; outros também o disseram depois, nem sempre conservando o pretendido sentido original. A questão seria se a filosofia – e qual filosofia – ajuda a viver e, no caso específico, a enfrentar melhor a condição mortal. Algumas vezes, a figura do filósofo aparece como uma caricatura: uma pessoa a quem nada afeta porque é desligada do mundo, ocupada com grandes questões – isso até que caia no buraco, como dizem ter acontecido com Tales de Mileto, que olhava para o céu em vez de prestar atenção no chão que pisava. Do mesmo modo, os estoicos estariam acima dos sofrimentos, pois pretendem ter total domínio sobre suas vontades. Há também uma figura mais convincente, a do sábio que está preparado interiormente para enfrentar as dificuldades por ter sopesado o que tem ou não tem valor ou por ter feito uma distinção entre o que está ou não está ao seu alcance.
Sobre filosofia e vida, eu gostaria de lembrar algumas passagens de meu filósofo preferido, Michel de Montaigne, que escreveu seus Ensaios nos idos do século 16 e, como nós, enfrentou uma peste terrível. Criticando a pretensão de certas filosofias e comparando as pessoas simples com as cultas, que leram muito, ele escreve:
De que utilidade podemos considerar que tenha sido para Varrão e Aristóteles esse entendimento de tantas coisas? Isentou-os dos inconvenientes humanos? Foram eximidos dos infortúnios que atormentam um carregador? Obtiveram da Lógica algum consolo para a gota? [...] Acaso se descobriu que o prazer e a saúde sejam mais deleitosos para quem conhece a astronomia e a gramática? [...] Vi em minha época cem artesãos, cem lavradores mais sábios e mais felizes do que reitores de universidades, e com os quais eu preferia parecer.
Montaigne, leitor voraz da tradição que veio da antiguidade, dos filósofos, poetas e historiadores, está aqui questionando o conhecimento como auxílio para a felicidade. Sabedoria (saber viver) é uma coisa, conhecimento (erudição ou informação) é outra. No entanto, a relação entre as duas é mais complexa do que o que transparece na referida crítica. Pessoas simples podem ser sábias; as eruditas, que leram muitas reflexões sobre a vida feliz, podem ser imprudentes e infelizes – e o contrário também pode ocorrer.
Sabedoria, segundo Montaigne, não consiste em colocar-se em um lugar inatingível, imperturbável, acima das adversidades da vida – o que pode ser fruto tanto da ignorância e da indiferença quanto do treino e do estudo. Ao contrário, ser humano é fundamentalmente deixar-se afetar, é ser vulnerável e entender sua condição também como vulnerável. Então, por não se identificar com os filósofos estoicos que pretendem estar acima da finitude, Montaigne escreve: “Não sou filósofo: os males machucam-me de acordo com o que pesam”. E acrescentou: “A vida é coisa frágil e fácil de perturbar”.
Uma filosofia da vulnerabilidade, que se deixa afetar pelo que acontece, leva-nos a pensar, antes de tudo, que “a doença” ou “a morte” não são conceitos abstratos e gerais, mas experiências contextualizadas, sociais e pessoais – portanto, diversas. De novo, recorro a Montaigne:
A morte tem algumas formas mais fáceis do que outras e assume características diversas de acordo com a imaginação de cada um. Entre as naturais, a que vem do enfraquecimento e entorpecimento me parece fácil e suave.
Há, portanto, mortes e mortes. De modo poético, Montaigne descreve o que ele entende ser a forma ideal de viver e de morrer:
Quero [...] que prolonguemos as tarefas da vida tanto quanto pudermos, e que a morte me encontre plantando minhas couves, e despreocupado dela, assim como de meu jardim imperfeito.
Poder esquecer-se da morte ocupando-se das tarefas cotidianas, plantando couves, é condição para uma vida feliz; é também essencial não se levar – nem as suas tarefas – demasiadamente a sério, acomodando-se à finitude, na bela metáfora do jardim imperfeito. (Aliás, a melhor tradução, tratando-se de um canteiro de couves, seria “minha horta imperfeita”, mas não soaria tão bem).
No entanto, a peste assolou Bordeaux e expulsou a família de Montaigne de seu castelo, obrigando-os a uma sofrida peregrinação que durou seis meses, fugindo da doença e da morte.
Tive que suportar esta situação estranha: a visão de minha casa me era assustadora. Eu, que sou tão hospitaleiro, vi-me numa penosa busca de abrigo para minha família, uma família transtornada, que causava medo a seus amigos e a si mesma [...].
A peste, ao desalojar-nos de nossa horta, colocando-nos em fuga ou em isolamento, não altera nossa condição humana mortal, mas, como em uma guerra ou terremoto, modifica a face mais usual da morte, perturba nossa maneira de imaginá-la, retira-a do contexto no qual podíamos integrá-la numa narrativa com sentido e até mesmo esquecer-nos dela como é necessário.
Poder esquecer-se da morte ocupando-se das tarefas cotidianas, plantando couves, é condição para uma vida feliz; é também essencial não se levar –nem as suas tarefas – demasiadamente a sério, acomodando-se à finitude, na bela metáfora do jardim imperfeito.
Com sua família, Montaigne agora foge da morte que antes não o assustava. No entanto, isso não deve ser interpretado como uma incoerência ou mesmo uma falha cognitiva relativa ao fato de que “todos vamos morrer um dia”. O que ocorre é que, na peste como na pandemia, além de não mais podermos nos ocupar de nossa horta como antes, o caráter coletivo do evento também traz consequências importantes. Montaigne não deixa de registrar que seu sofrimento e preocupação diante da peste deveram-se, em grande parte, à sua responsabilidade com outros, com a sua família: pois, em vez de ter de lidar apenas com sua vida e morte, agora lida com a vida e a morte de muitos. Em síntese: embora nunca tenhamos deixado de ser mortais, na pandemia estamos mais vulneráveis (obviamente, uns são mais vulneráveis do que outros).
Pode a filosofia, na sua tradição de modo de vida, oferecer alguma estratégia para enfrentarmos tal situação – e, notadamente, o isolamento social? Parece que em tese, sim, pois a filosofia exige recolhimento e apela para a vida interior. Então, em princípio, pessoas habituadas ao recolhimento estão treinadas para enfrentar o tal isolamento, principalmente por meio da leitura. A leitura é um diálogo com outros, na solidão. O mesmo Montaigne, que disse que a erudição e o conhecimento não livraram Aristóteles dos infortúnios, também escreveu que os livros “são a melhor provisão que encontrei para esta viagem humana” e que a leitura “embota o aguilhão da dor, se esta não for extrema e dominante”.
Pode a filosofia, na sua tradição de modo de vida, oferecer alguma estratégia para enfrentarmos tal situação – e, notadamente, o isolamento social?
As estratégias da filosofia, como os jardins, são imperfeitas. Conviver com livros é um meio de ocupar-se de si mesmo, de cuidar de si mesmo, de alimentar a alma – mas também de voltar-se para os outros, para a diversidade da experiência humana, impossível de ser anulada na expressão “todo mundo vai morrer”.
Por falar em livros, venho me lembrando recorrentemente de um conjunto de contos lidos há muitos anos. Na obra Como se morre, Émile Zola imagina o fim da vida de pessoas de diferentes classes sociais. Se é verdade que ricos e pobres morrem, o que ele deixa manifesto, de maneira inesquecível, é que não é do mesmo modo.