Opinião

O ano em que Belo Horizonte enfrentou a peste

Heloísa Starling descreve a chegada da gripe espanhola à jovem capital mineira, em 1918

Fachada do prédio da estação ferroviária de Belo Horizonte já nos anos 1980: local foi a porta de entrada da gripe espanhola na capital mineira em 1918
Fachada do prédio da estação ferroviária de Belo Horizonte já nos anos 1980: local foi a porta de entrada da gripe espanhola na capital mineira, em outubro de 1918 Arquivo Público Mineiro

Logo nos primeiros dias de julho de 1918, o jornal O combate trouxe a notícia: um surto de gripe tinha paralisado o esforço de guerra na Alemanha – tanto na economia quanto na capacidade de mobilização da sociedade. Publicado em São Paulo, em forma de tabloide, o jornal fazia parte da imprensa de filiação anarquista e tinha um claro propósito: convencer o maior número possível de brasileiros de que aquela era uma guerra insana. Seus redatores entendiam que a Alemanha havia escolhido provocar a guerra para tornar-se uma potência mundial, torciam para que o exército alemão fosse forçado a recuar depois de ter empurrado o mundo na direção do desastre e se recusavam a acreditar na notícia de que a velha e inofensiva gripe conseguiria sustar o esforço de guerra, em Berlim. Atchin!...Atchin!.., manchetou, irônico, na primeira página.

Não levou três meses, e O combate precisou mudar o tom das manchetes. Aquela era uma gripe esquisita, que infectaria, em mais ou menos 90 dias, um quinto da população mundial e mataria entre 20 milhões e 50 milhões de pessoas. No mês de outubro, a gripe desembarcou em São Paulo, vinda do Rio de Janeiro – cinco mil paulistanos morreram até o fim de dezembro. Os jornalistas deixaram a incredulidade de lado e trataram de informar aos leitores que os casos estavam avançando depressa demais na cidade e que se tratava de uma pandemia, vale dizer, um tipo de epidemia sem controle e com expansão mundial. Chamava-se Influenza Hespanhola, avisou o jornal. Mas entrou para a História com o nome de Gripe Espanhola.

O alerta veio da Espanha, o primeiro país a dar publicidade à virulência e à carnificina produzidas pela doença. Justiça seja feita, não foi só O combate que precisou rever suas previsões sobre a letalidade de uma gripe. O mundo inteiro custou a reconhecer a pandemia. Metidas no cataclismo de um conflito que podia até estar no final, mas já durava quatro anos, as potências ocidentais estavam exaustas e levaram tempo até encarar a gravidade da ameaça. A negligência custou caro: a gripe fez, em menos de cinco meses, um número de vítimas superior aos mortos enterrados nesses quatro anos de guerra.

O surto não tinha nada de benigno, a doença avançava com rapidez pela zona urbana, suburbana e rural e atacava qualquer pessoa: ricos e pobres, homens, mulheres, crianças, velhos, jovens, fracos ou atléticos, sem distinção.

Ninguém atinava com o que era aquilo. Em 1918, a comunidade científica conhecia pouco sobre a estrutura e a forma de atuação de um vírus e, menos ainda, sobre a origem da nova cepa que deu origem à influenza. Os médicos tampouco conseguiam entender que a alta capacidade de mutação do vírus dificultava o seu reconhecimento pelo sistema imunológico da vítima e anulava a chance de imunidade por infecções anteriores. 

E também não se sabia ao certo onde a Espanhola começou. Talvez ela tenha se originado em algum lugar nos Estados Unidos e chegado à Europa junto com os soldados embarcados no verão de 1918, para participarem da montagem do rolo compressor dos aliados que levaria ao fim da guerra. Mas uma coisa é sabida: a doença atacava rápido, contaminou as tropas em terra antes que precauções fossem tomadas e se espalhou pelas populações civis em duas ondas mortíferas, na primavera e no outono de 1918. Seguia uma espécie de rota geográfica. Atingia inicialmente as zonas litorâneas, em seguida embarcava nos navios e descia em terra com os marinheiros – foi desse modo que alcançou a Índia, o Sudeste da Ásia, a China, a África, o Japão e a América do Sul.

A gripe espanhola desembarcou no Rio de Janeiro, provavelmente no dia 14 de setembro. Veio de Lisboa no barco Demerara, que atracou no porto com gente doente a bordo. Os tripulantes desceram na Praça Mauá sem que ninguém prestasse muita atenção, mas já contaminados e contaminando, conta o escritor Pedro Nava. A doença irrompeu em setembro, e as autoridades demoraram a abrir os olhos. Tornou-se calamidade no meio de outubro. Era apavorante a rapidez com que a gripe ia da invasão ao apogeu em algumas horas. A vítima sentia uma dor de cabeça lancinante seguida de sufocações; a morte sobrevinha em poucos dias. “Aterrava a velocidade do contágio e o número de pessoas que estavam sendo acometidas”, diz Pedro Nava. “O terrível já não era o número de causalidades – mas não haver quem fabricasse caixões, quem os levasse ao cemitério, quem abrisse covas e enterrasse os mortos. O espantoso já não era a quantidade de doentes, mas o fato de estarem quase todos doentes e impossibilitados de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exercer, em suma, os misteres indispensáveis à vida coletiva – quatro quintos dos cariocas no chão, na cama ou na enxerga dos hospitais”, ele descreveu em Chão de ferro, um de seus livros de memórias.

Foi então que Belo Horizonte se encontrou com a peste. O médico Samuel Libânio, responsável pela Diretoria de Higiene, suspendeu o comércio e ordenou o fechamento das lojas; os proprietários obedeceram, mas a contragosto: a influenza não iria se alastrar em Belo Horizonte com a mesma força como acontecia no Rio de Janeiro, e os prejuízos seriam incalculáveis para a economia do estado, reclamaram, furiosos.

Em Belo Horizonte, a gripe espanhola chegou quase sem fazer barulho. É certo que todo mundo tinha alguma informação a respeito da peste que ameaçava dizimar o Rio de Janeiro, mas as autoridades mineiras andaram minimizando noticias sobre a doença: “é pura e simplesmente a gripe ou influenza; cumpre não confundi-la com a gripe pneumônica, de Dakar, que esta sim é gravíssima, de prognósticos muito sérios”, tranquilizava o jornal Diário de Minas. E concluía: “não há, pois, razão para nos enchermos de terror, como vai acontecendo por aí, confundindo uma coisa com outra, pondo em sobressalto toda gente”. Não se sabe de onde o Diário de Minas tirou suas informações sobre a benignidade da epidemia, mas não falava sozinho. Os médicos batiam boca diante de uma doença que ninguém ainda tinha decifrado, o governo estadual temia a paralisação do comércio, os eventuais prejuízos econômicos, as consequências de ter de enfrentar uma população em pânico. A imprensa repercutiu o Palácio da Liberdade.

Tranquilizar a população era um modo de tranquilizarem a si próprios – médicos, governantes, jornalistas. Ademais, Belo Horizonte tinha fé no imaginário que concebeu para si, e isso dava credibilidade aos argumentos de quem se recusava a acreditar na aproximação de uma epidemia. Construída de acordo com os modernos preceitos de higiene urbana da época estabelecidos por engenheiros e sanitaristas de competência nacional, como gostavam de alardear as autoridades, Belo Horizonte tinha boas condições de salubridade e um clima excelente. O número reduzido ou inexistente de doenças com potencial de epidemia até então registradas na cidade – difteria, cólera, febre amarela, varíola – reafirmava a crença nas boas condições sanitárias da capital de Minas, e a população recebeu com certa despreocupação as notícias vindas do Rio de Janeiro.

O alarme só disparou no início de outubro. Cotidianamente, o trem noturno partia da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, atravessava as cidades da Zona da Mata mineira e aportava, de madrugada, na Estação Ferroviária – a porta de entrada de Belo Horizonte. No dia 7 de outubro, um oficial proveniente da Vila Militar, no Rio de Janeiro, desembarcou na Praça da Estação junto com a família. Instalaram-se numa casa no bairro da Floresta, e, dois dias depois, os primeiros sintomas da Espanhola se fizeram sentir. Quem morava no bairro entrou em pânico assistindo à chegada dos enfermeiros responsáveis pela transferência imediata dos doentes para o Hospital de Isolamento e dos funcionários da Diretoria de Higiene – o equivalente hoje à Secretaria de Saúde –, devidamente paramentados, transportando, em carroças da prefeitura, o equipamento para desinfecção da casa. 

As autoridades responsáveis pela saúde pública tentaram aliviar a gravidade da situação, mas já não havia mais tempo. No fim da primeira quinzena do mês de outubro, os moradores de Belo Horizonte começaram a ser confrontados com os efeitos da gripe epidêmica na cidade. O surto não tinha nada de benigno, a doença avançava com rapidez pelas zonas urbana, suburbana e rural e atacava qualquer pessoa: ricos e pobres, homens, mulheres, crianças, velhos, jovens, fracos ou atléticos, sem distinção.

Foi então que Belo Horizonte se encontrou com a peste. O médico Samuel Libânio, responsável pela Diretoria de Higiene, suspendeu o comércio e ordenou o fechamento das lojas; os proprietários obedeceram, mas a contragosto: a influenza não iria se alastrar em Belo Horizonte com a mesma força como acontecia no Rio de Janeiro, e os prejuízos seriam incalculáveis para a economia do estado, reclamaram, furiosos. As ruas ficaram vazias, cafés e bares, cinemas, clubes e casas de diversão, às moscas, a circulação dos bondes foi reduzida. O Colégio São José, na Rua dos Tamoios, foi o primeiro a interromper as aulas; em seguida, vieram as escolas públicas – grupos escolares, a Escola Normal e o Ginásio Mineiro –, os colégios particulares e as quatro faculdades que, no futuro, dariam origem à UFMG: Direito, Medicina, Odontologia e Farmácia. Tudo estava deserto, menos as farmácias onde multidões se aglomeravam em busca dos medicamentos que começavam a faltar. Fechadas em casa com os provimentos que se podiam acumular, as pessoas se esforçavam em resistir, mas rareavam gêneros de primeira necessidade: pães, leite, carne, verduras, fubá, açúcar, sabão.

Ninguém controla a peste de uma só vez, ensina Daniel Defoe, no romance Diário do ano da peste. É preciso desencadear os mecanismos de defesa e ir aperfeiçoando os meios de proteção: compreender o contágio, descobrir de onde a doença partiu e como ela se expande por uma cidade. Em Belo Horizonte, a gripe espanhola se alastrou indistintamente pelos bairros. Os hospitais não dispunham de capacidade para receberem tantos doentes ao mesmo tempo, e era urgente criar um serviço de hospitalização para mendigos e para a população pobre. Havia dificuldades de abastecimento, risco de desemprego, queda no volume de negócios, perigo de falência, desestruturação dos elementos que constroem o cotidiano das pessoas. Quem não era funcionário público, não recebia salário mensal e vivia exclusivamente do trabalho diário ficou em situação precária – iam faltar recursos. Não existia remédio disponível para todo mundo, e as pessoas não podiam dominar a epidemia, mas descobriram que era possível juntar esforços para tentar combatê-la.

Faculdade de Medicina, em 1914: quatro anos depois, prédio seria transformado em hospital para acolher os doentes
Escola de Medicina de Belo Horizonte (futura Faculdade de Medicina da UFMG), em 1914: quatro anos depois, o prédio seria improvisado como hospital para acolher as vítimas da gripeFaculdade de Medicina da UFMG

Reconhecer isso uniu a população. A Congregação da Faculdade de Medicina transformou o prédio da escola em hospital provisório com 112 leitos e nove enfermarias e orientou professores e estudantes a irem além do atendimento interno, prestando serviços nos inúmeros postos de saúde que estavam sendo abertos na cidade. A Escola de Enfermagem Carlos Chagas – a primeira escola de enfermagem de Minas Gerais, hoje integrada à UFMG – ainda não existia, mas a Congregação da Medicina nem titubeou: os médicos convocaram as enfermeiras da Cruz Vermelha para o trabalho nos hospitais, e elas responderam imediatamente.

O prefeito Vaz de Mello, por sua vez, mandou executar desinfecções diárias nos bondes elétricos e endureceu de vez as medidas para evitar o contágio: proibiu aglomerações nas ruas e nos locais públicos, incluindo as romarias ao cemitério do Bonfim, no dia de Finados que se aproximava. A Igreja Católica cancelou aulas de catecismos e encontros de fiéis e engajou padres e associações religiosas na coleta e distribuição de alimentos, auxílio financeiro e remédios e na divulgação das medidas preventivas do contágio. A mais conhecida dessas associações, a Sociedade São Vicente de Paulo, abriu sete postos de socorro para atender à população da região que, à época, compunha a zona suburbana de Belo Horizonte: Floresta, Lagoinha, Quartel, Barro Preto, Cardoso e Barroca. As poderosas comunidades de imigrantes italianos e espanhóis não deixaram por menos e disponibilizaram as sedes de suas Sociedades de Mútuo Socorro para instalação de postos de atendimento. Choveram doações de todos os lados: em dinheiro, mantimentos, roupas, carroças de lenha, casas para instalação de postos de socorro.

Surpreendentemente, essas pessoas decidiram colocar todas as chances ao seu lado. As iniciativas individuais eram boas, mas não bastavam, e a cidade se uniu para espantar o medo. De várias maneiras, cada um ao seu modo, quem morava na capital de Minas deu seu jeito e descobriu o afeto da compaixão.

“O tempo da peste é o tempo da solidão forçada”, diz o historiador Jean Delumeau. Surge o perigo do contágio, que, de início, procura-se obstinadamente não ver para escapar de enfrentar a onda ascendente do perigo. Na cidade sitiada pela doença e posta em quarentena, a morte é anônima, as pessoas são separadas umas das outras; confrontada com a situação de isolamento, muita gente se afoga em tristeza. Portas e janelas fechadas, o silêncio opressivo da rua, a distância imposta diante da presença dos outros – tudo isso aumenta o medo.

Em 1918, Belo Horizonte experimentou o tempo da peste. Seus moradores viveram uma situação-limite, até então desconhecida e tão urgente quanto o terror que cada um deles deve ter sentido. Surpreendentemente, essas pessoas decidiram colocar todas as chances ao seu lado. As iniciativas individuais eram boas, mas não bastavam, e a cidade se uniu para espantar o medo. De várias maneiras, cada um ao seu modo, quem morava na capital de Minas deu seu jeito e descobriu o afeto da compaixão: acendeu a própria sensibilidade diante do sofrimento alheio para focalizá-la sobre os doentes – ou sobre os riscos da doença que se espalhava pelos bairros. A compaixão eliminou algo da angústia gerada pela solidão, e a razão é fácil de entender. Ela abre o coração do indivíduo no instante exato em que vê o sofrimento do seu semelhante, por mais distante de si que possa estar o sofredor.

Os moradores de Belo Horizonte souberam manejar a força desse afeto. Afinal, criaram uma série de ações que, no conjunto, alcançaram a todos. A gripe espanhola durou três meses. A população da cidade girava em torno de 45 mil habitantes; a doença derrubou por volta de 15 mil pessoas. Os registros apontam um total de 282 mortes, mas faltam dados. Quantos faleceram fora dos hospitais? Quantos óbitos foram notificados? Não sabemos. Toda essa história ficou esquecida no tempo – pouca gente ainda se lembra dela, hoje em dia. 

Cem anos se passaram, e Belo Horizonte volta a enfrentar uma nova epidemia, e imagens de pesadelo estão se espalhando por toda Minas Gerais. Ninguém recria o já vivido, e é certo que a História nunca se repete. Mas, por vezes, podemos arriscar e pedir algo emprestado ao passado. Talvez seja hora de tentarmos esse empréstimo. Para enfrentarmos juntos o tempo sombrio que estamos vivendo.

Referências bibliográficas

BARRETO, Abílio. Belo Horizonte. Memória histórica e descritiva. Belo Horizonte: Fundaçao João pinheiro, 1996. 2 volumes

CASTRO, Ruy. Metrópole à beira-mar; o Rio moderno dos anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 2019

DEFOE, Daniel. Diário do ano da peste. Porto Alegre: L&PM, 1987

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989

DIÁRIO de Minas. Belo Horizonte, 18 de outubro de 1918

MARQUES, Rita de Cássia. “A Faculdade na cidade”. In: STARLING, Heloisa Maria Murgel; GERMANO, Lígia Beatriz de Paula; MARQUES, Rita de Cássia (org.). Medicina; história em exame. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011

MARQUES, Rita de Cássia. “A pandemia gripal de 1918 em Minas Gerais”. Revista Médica de Minas Gerais. vol. 2, n° 4, jan-mar de 1997

NAVA, Pedro. Chão de ferro. São Paulo: Companhia das Letras, 2012

SALLES, Pedro. Notas sobre a história da Medicina em Belo Horizonte. Belo Horizonte: Cutiara, 1997

SILVEIRA, Anny Jacqueline Torres. A Influenza Espanhola e a cidade planejada. Belo Horizonte: Argumentum, 2007

WOODARD, James. Um lugar na política; republicanismo e regionalismo em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 2019

Este artigo foi publicado originalmente no Portal G1/Minas Gerais, em 14/4/2020, e integra série comemorativa dos 300 anos do estado

A chegada da gripe espanhola a Belo Horizonte também foi abordada em reportagem do telejornal MG2, da Globo Minas.

Heloísa Starling / Professora do Departamento de História e coordenadora do Projeto República-UFMG