[Opinião] Peruaçu: patrimônio da humanidade e cenário de pesquisas arqueológicas da UFMG
Presença da Universidade na região teve contribuição decisiva nesse processo, analisam os professores Maria Jacqueline Rodet, da Fafich, e Fábio de Oliveira, do IGC

O cânion do rio Peruaçu, localizado no Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, no extremo norte de Minas Gerais, foi reconhecido como Patrimônio Mundial Natural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O título foi anunciado no último dia 13 de julho, em Paris, França, na 47ª reunião do Comitê de Patrimônio Mundial.
Os critérios de reconhecimento são baseados principalmente na relevância natural, geológica e geomorfológica do cânion, mas também levam em conta sua dimensão cultural, seja por causa das pesquisas arqueológicas que remontam ao final do período Pleistoceno, por volta de 13000 AP (Antes do Presente), quando viveram os primeiros habitantes da região, seja em razão da presença do povo indígena Xacriabá e das comunidades atuais, incluindo os quilombolas.
O Vale do Rio Peruaçu abriga um dos carstes tropicais mais expressivos do Brasil. Sua paisagem, composta de cavernas, cânions, dolinas e outras feições cársticas, é referência para estudos sobre a evolução de paisagens tropicais. Pesquisas desenvolvidas na região geram dados importantes sobre processos geológicos e ambientais do Quaternário, contribuindo para a ciência e para a conservação do patrimônio natural.
O título traz várias implicações para o vale e suas populações, tanto por proporcionar maior visibilidade ao patrimônio natural e cultural, quanto por reforçar o compromisso do Brasil com a cooperação científica, a preservação ambiental e cultural, mantendo e criando novos gatilhos que garantam a preservação desses contextos.
O Vale do Rio Peruaçu abriga um dos carstes tropicais mais expressivos do Brasil. Sua paisagem, composta de cavernas, cânions, dolinas e outras feições cársticas, é referência para estudos sobre a evolução de paisagens tropicais.
O local abriga uma diversidade de ecossistemas – Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga – sustentada por diferentes substratos rochosos, que dão origem a floras particulares, as quais, por sua vez, sustentam faunas específicas associadas a cada bioma. A evolução cárstica na região resultou em um cânion de aproximadamente 17 quilômetros de extensão e profundidades que chegam a 200 metros, além de grutas com mais de 5 quilômetros de desenvolvimento, 100 metros de altura, como é o caso da Gruta do Janelão, situada dentro do Parque e aberta à visitação turística. Os setores abrigados somam muito mais que centenas, grande parte deles com presença de vestígios de ocupações humanas.
Pesquisadores do Setor de Arqueologia do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG trabalham na bacia do Rio Peruaçu desde o início dos anos 1980. Durante muito tempo, a atuação na região contou com a parceria da Missão Franco-brasileira. Atualmente, a UFMG desenvolve projetos interdisciplinares no local, envolvendo pesquisadores de diversas áreas – botânica, arqueologia, geografia, geomorfologia, zooarqueologia, entre outras –, com apoio de agências de fomento como a Fapemig e o CNPq e recursos oriundos de emendas parlamentares. Atualmente, há dois projetos principais em andamento: as escavações do Abrigo do Malhador, em conjunto com pesquisadores da USP, e na Lapa da Hora, com fomento da Fapemig e de emenda parlamentar federal.

O papel das pesquisas arqueológicas no norte do estado tem sido fundamental para o desenvolvimento da arqueologia brasileira. Elas têm gerado conhecimento sobre questões que abrangem as doenças que afetavam os grupos que viviam no local, hábitos alimentares, as plantas que domesticaram, os temas escolhidos para ser reproduzidos nas paredes do cânion e os materiais com base nos quais foram produzidas as tintas. Os estudos também abordam os tipos de rocha selecionados para a produção dos instrumentos, os tipos de instrumentos que, de fato, foram produzidos, as técnicas escolhidas para a confecção dos objetos cerâmicos, além da produção de um grande conjunto de datações radiocarbônicas que confirmam as ocupações da região no final do período Pleistocênico. Esse conjunto de estudos apresenta resultados que permitem discutir a chegada dos grupos humanos na América.
Quais são os principais resultados das pesquisas arqueológicas da UFMG no vale do rio Peruaçu nos últimos 40 anos? O primeiro deles talvez seja a geração das dezenas de datas em carbono-14, as quais situam as primeiras ocupações humanas no setor por volta de 13000 Antes do Presente. Elas também demonstram claramente uma ocupação de longa duração, já que, desde esse período até a chegada dos europeus na região, no século 18, quando as populações indígenas foram praticamente exterminadas e o cânion foi sistematicamente ocupado, como indicam os milhares de dados provenientes das escavações em vários sítios do setor ao longo de toda a estratigrafia.
Outro aspecto importante dessa longa ocupação é a domesticação de plantas, ocorrida por volta de 1500 AP. Entre as espécies domesticadas, destaca-se o milho, alimento fundamental para as populações americanas. De acordo com o pesquisador Fábio de Oliveira Freitas, da Embrapa, as análises genéticas realizadas em amostras exumadas em escavações da UFMG nos anos 1990, na Lapa da Hora, indicaram características muito primitivas, próximas da planta original, presente no México. Ou seja, é a mais distante amostra com características primitivas da planta original. Isso implica novas hipóteses para as questões da domesticação do milho na América do Sul, indicando que os grupos passados manejaram e fixaram determinadas características que originaram as raças de milhos atuais e subatuais.
Esses exemplares foram encontrados em estruturas vegetais enterradas nos sítios arqueológicos, juntamente com outras plantas, muito provavelmente em forma de oferendas, pois acompanhavam sepultamentos e grafismos rupestres, dentro do espaço confinado dos abrigos.
As pesquisas revelam não apenas a permanência desses grupos em seu interior ao longo de milênios, mas também a profunda interação que estabeleceram com o ambiente, uma relação simbiótica que se refletiu em práticas de subsistência, produção material e simbolismo.
Os grafismos rupestres do cânion são outro aspecto importante das pesquisas e indicam um conhecimento profundo de rochas como a hematita, a goetita e o manganês, que serviram de base para a produção das tintas. Os temas e as cores também oferecem um vislumbre de como esses grupos se percebiam no mundo e como se relacionavam com os espaços físicos que percorriam e vivenciavam. A complexidade das combinações de cores – vermelha, amarela, preta – para compor figuras e a transformação de certos elementos de uma imagem na composição de outra são exemplos das impressões deixadas nesses espaços.
Finalmente, entre os instrumentos em pedra lascada, se sobressai o plano-convexo: realizado sobre lascas mais alongadas, por vezes espessas, ele tem, como indica o nome, uma face plana oposta a outra convexa, além de dois gumes paralelos e muito eficazes. Esse instrumento aparece com as primeiras populações e desaparece quando elas são dizimadas, o que demonstra um longo caminho de estabilidade e, muito provavelmente, de eficácia.

Esse conjunto de informações indica uma estabilidade dessas populações passadas dentro do Vale do Rio Peruaçu, demonstrando seus conhecimentos e suas relações estáveis com o contexto ecológico e geomorfológico da região. As pesquisas revelam não apenas a permanência desses grupos em seu interior ao longo de milênios, mas também a profunda interação que estabeleceram com o ambiente, uma relação simbiótica que se refletiu em práticas de subsistência, produção material e simbolismo.
Os registros arqueológicos, que revelam os vestígios dessas antigas ocupações, tornaram-se parte de um patrimônio que se projeta para o mundo, reconhecido por seu valor universal excepcional. Esse legado é preservado e comunicado por meio da unidade de conservação, o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, e pelas iniciativas comunitárias que transformam o conhecimento acumulado em experiências compartilhadas, como as visitas guiadas, a arte local e os empreendimentos de economia solidária – como o Armazém do Vale, que possibilitou a formação de uma rede de mulheres que expõem e comercializam os seus produtos. Cabe ressaltar que a UFMG também exerce papel importante nessa frente social e comunitária, por meio dos projetos de extensão que contribuem para aprimorar a formação dos guias do parque, ampliando seu conhecimento sobre questões geológicas, geomorfológicas e arqueológicas.
O Vale do Rio Peruaçu, em sua monumental paisagem cárstica, é um vale de memórias ancestrais que emergem das rochas gravadas e dos solos escavados, mas que seguem vivas nas práticas sociais e culturais atuais. Esse cenário grandioso e simbólico justifica plenamente o reconhecimento internacional recebido, afirmando o Peruaçu como um território de longa duração, onde natureza e cultura se entrelaçam de forma indissociável e potente.
(Maria Jacqueline Rodet, professora do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Fafich, e Fábio de Oliveira, docente do Departamento de Geografia do IGC)