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Origens, características e efeitos do ‘cancelamento’ são tema de entrevista no Conexões

Issaaf Karhawi, pesquisadora em comunicação digital na USP, falou sobre o tema, em programa da Rádio UFMG Educativa

Características do Twitter ajudam a amplificar fenômeno do cancelamento
Características do Twitter ajudam a amplificar fenômeno do cancelamento Foto: Catalin Cimpanu / https://url.gratis/KwfJV

Cultura do cancelamento foi eleito o termo do ano, em 2019, pelo dicionário australiano Macquarie. No ano passado, foram inúmeros os casos de artistas e personalidades públicas que foram canceladas. O alto número de cancelamentos tem levado influenciadores a se posicionarem contra o que chamam de “cultura do cancelamento”. Uma das justificativas é de que ela não funciona como uma forma eficaz de controle social e, além disso, ainda potencializa a polarização das discussões e o linchamento virtual, comprometendo o debate de temas relevantes e necessários. 

Agora, em 2021, as polêmicas do reality show da Rede Globo Big Brother Brasil reacenderam as discussões sobre cancelamento, como reação a posturas e atitudes de famosos e influenciadores digitais que estão confinados na casa. Mas, embora impulsionado pela internet, especialmente pelo Twitter, o fenômeno do cancelamento começou antes de as redes sociais ganharem tanta força, e fora do ambiente digital. A pesquisadora Issaaf Karhawi, que estuda comunicação digital na USP, explicou, em entrevista ao programa Conexões, da Rádio UFMG Educativa, nesta sexta-feira, 12, que as raízes do cancelamento estão em universidades estadunidenses e na chamada call-out culture.

"Ela começa nas universidades dos Estados Unidos, quando surgiu um movimento dos estudantes, que reivindicavam um olhar diferente dos professores nas disciplinas que eles ministravam. Os alunos queriam disciplinas menos eurocêntricas, com mais autoras mulheres, isso passou a ser uma reivindicação muito comum nos Estados Unidos, resultando na chamada call-out culture, a cultura de calar alguém", contextualizou Karhawi. Nesse processo, os calados eram os professores.

A migração para o digital resultou, entre outras coisas, na versão brasileira do cancelamento, que cresceu e ganhou espaço no Twitter. Antes da criação da rede, em outras redes sociais, como o finado Orkut, já eram discutidos outros temas, como bullying e cyberbulying, lembrou Karhawi. Ainda assim, de acordo com a pesquisadora, havia uma dinâmica bem diferente. “O que fica muito evidente é que o cancelamento se inicia no Twitter, porque uma das características do cancelamento é a velocidade, e o Twiter, especificamente, é um lugar onde as pautas surgem e desaparecem. Então, essa velocidade característica do fenômeno fica mais evidente nessa rede social”, explicou.

Cultura do cancelamento
Acerca da expressão "cultura do cancelamento", a pesquisadora adota uma postura mais crítica. Para Karhawi, essa parece ser uma expressão que se adequou bem aos anseios da mídia tradicional. "É uma forma de generalizar, de dizer que estamos todos nessa cultura, talvez uma forma até mais fácil de traduzir o fenômeno", pontuou. No entanto, ela considera importante refletir, de forma mais ampla, uma vez que o próprio fenômeno do cancelamento é também amplo. Dessa forma, é preciso pensar também sobre as relações do fenômeno com a nossa própria cultura e com características do digital.

“O cancelamento é intransigente. É binário: ou a pessoa está certa, ou errada, não existe meio termo. Ou a pessoa é fada sensata ou ela é cancelada. Isso tem a ver com a nossa cultura e tem relação direta também com o digital, que é um lugar de polarização, um lugar binário. O temido algoritmo, por exemplo, é uma forma de organizar a informação das redes e funciona por um código matemático simples (10101), ou seja, binário, ou tudo ou nada. As redes sociais replicam isso: curtir ou não curtir, comentar ou não comentar. E a gente vai trazendo essas características do digital e do algoritmo para as nossas relações sociais. A gente replica quase como um espelho do código do algoritmo nas nossas redes sociais: ou você está certo ou está errado, e fim”, analisou.

Banalização de pautas sérias
Na entrevista ao Conexões, Issaaf Karhawi também alertou sobre o perigo de se caracterizar todas as pautas como cancelamento, porque isso faz com que se perca de vista que várias atitudes não podem ser vistas apenas como “um mero cancelamento”. Entre essas questões, estão temas como racismo, injúria racial, discurso de ódio. calúnia, difamação, entre outros.

“Não importa o espaço em que essas questões apareçam, seja no ambiente digital ou não. Não podemos lidar com essas questões como sendo um cancelamento, em que a gente esvazia e polariza. É importante olhar para tudo isso e categorizar, para que a gente consiga avançar [nessas discussões]”, defendeu.

Para essas questões, deixar de seguir nas redes sociais ou fazer um mutirão de ofensas não são reações adequadas. Issaaf Karhawi lembra que uma das coisas que a “cultura do cancelamento” fz é colocar em evidência pautas importantes, como no BBB de 2020, que deixou muito evidentes questões sobre racismo “nas quais talvez muita gente não tivesse pensado até então.”

“O problema do cancelamento é a forma como ele se dá: a gente não dá espaço para a pessoa aprender com os próprios erros, a gente desumaniza e trata as pessoas como apenas uma conta na internet que tem que ser banida. Precisamos olhar pra isso com criticidade”, finalizou

Ouça a conversa com Hugo Rafael

Issaaf Karhawi é pesquisadora do tema e tem conteúdos publicados sobre o assunto, como os textos O que gera o cancelamento e Big Brother Brasil e o encontro com a autenticidade extrema. Esses e outros conteúdos estão disponíveis no site dela.

Produção de Flora Quaresma, sob orientação de Hugo Rafael e Jaiane Souza