Pesquisa e Inovação

Pesquisa inédita no Brasil promove assembleias de cidadãos para debater questões complexas

Coordenado no país por professores da UFMG, projeto tem alcance global e discute tecnologia de edição genética; objetivo mais amplo é testar formas de participação nas democracias

Assembleia on-line reuniu 26 cidadãos que deram contribuições para futuros regulamentos e ações relacionadas à edição genômica
Assembleia on-line reuniu 26 cidadãos que deram contribuições para futuros regulamentos e ações relacionadas à edição genômica Imagem: Captura de tela

Nos últimos anos, tem ganhado força, com estímulo de cientistas políticos, organizações da sociedade civil e governos de diversos países, o movimento das assembleias cidadãs, que reúnem pessoas leigas para debater questões complexas. Atualmente, está em curso a iniciativa Global Citizens’ Assembly on Genome Editing, que, nos últimos dois anos, promoveu reuniões na Austrália, França e Inglaterra sobre edição genética. O projeto é idealizado pelo Centre for Deliberative Democracy and Global Governance, da Universidade de Canberra, na Austrália.

O braço brasileiro do projeto é coordenado por professores da UFMG e reúne também pesquisadores das universidades Estadual Paulista (Unesp), Federal de Goiás (UFG) e Estadual de Maringá (UEM). Eles realizaram, em finais de semana no final de junho e início de julho, on-line, a primeira assembleia cidadã brasileira sobre edição genética, com foco em aplicações dessa tecnologia na agricultura.  

“A iniciativa faz parte de um movimento de criação e teste de novas formas de participação nas democracias contemporâneas”, afirma o professor Ricardo Fabrino, do Departamento de Ciência Política da Fafich/UFMG, que coordena o projeto no Brasil com o professor Yurij Castelfranchi, do Departamento de Sociologia, também da Fafich.

Ricardo Fabrino:
Ricardo Fabrino: saídas para crises da democraciaFoto: Acervo pessoal

Fabrino explica que o objetivo é encontrar mecanismos capazes de contribuir para saídas às crises da democracia observadas na última década. “O pressuposto é o de que, sob determinadas condições, é possível reunir pessoas comuns para discutir e encontrar soluções para questões complexas, e os resultados dessas discussões deverão ser apresentados a autoridades para a formulação de leis e ações de governo”, diz. Os participantes das assembleias, ele acrescenta, são selecionados de modo a representar as diversidades de gênero, raça, nível educacional e de religião, no país.

Todas as assembleias que fazem parte do projeto internacional têm como tema central os dilemas envolvidos com adoção do CRISPR, uma técnica de edição genética descoberta na última década que tem possibilitado avanços em pesquisas nas áreas de saúde, meio ambiente e agricultura. Mais demandas por regulação, divulgação da existência da tecnologia e investimento em pesquisa nacional estão entre os pontos sugeridos pelos 26 cidadãos de todas as regiões do país que participaram da assembleia.

As recomendações foram entregues a representantes da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas (RBMC). Os mesmos resultados serão entregues, agora, a políticos que atuam na área de Ciência, Tecnologia e Inovação.

Plantas resistentes
O CRISPR tem grande potencial, por exemplo, para a produção de variedades de plantas resistentes a pragas, agrotóxicos e à seca. Desde 2018, seu uso é permitido no Brasil pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Apesar do entusiasmo de uma parcela da comunidade científica, de agricultores e produtores de insumos, há discussões sobre a importância e urgência de uma regulação específica para essa nova tecnologia e o monitoramento de seus impactos.

Há quem defenda mais investimentos em pesquisas sobre os riscos ambientais e impactos sociais do uso da tecnologia antes que ela seja adotada em larga escala. Outros questionam aspectos éticos ou possíveis impactos no agravamento de desigualdades sociais. Dilemas como esses foram discutidos pelos organizadores da assembleia brasileira com os cidadãos selecionados do evento. Para auxiliar no debate, as pessoas participaram de um processo formativo, o que, segundo os organizadores, faz da iniciativa também um experimento de ponta em técnicas e modos de divulgação científica e apropriação social do conhecimento. 

Vídeos, podcasts e dinâmicas de discussão foram elaborados especialmente para a assembleia cidadã. E durante os eventos, os cidadãos participaram de debates com especialistas com visões distintas sobre o uso da tecnologia CRISPR, entre os quais, a professora do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG Santuza Teixeira.

Para Santuza, a iniciativa é muito importante, na medida em que ajuda a aprimorar a regulamentação de novas tecnologias no Brasil e dá aos cientistas mais uma oportunidade de informar diferentes setores da população. “Na assembleia, apresentamos avanços e limitações, que ainda existem e precisam ser vencidas, e mostramos como a ciência segue na direção de promover o bem-estar das pessoas”, ela salienta.  

Canadá e Irlanda
As assembleias cidadãs são parte de uma série de experimentos que têm sido implementados nas últimas décadas para buscar novas formas de engajamento democrático. O primeiro encontro foi realizado no Canadá, em 2004, quando moradores da província da Colúmbia Britânica debateram proposta de alteração do sistema eleitoral local – o resultado do debate foi levado para votação em referendo. Países europeus, como Bélgica, França e Espanha, têm recorrido a iniciativas semelhantes para discutir e propor soluções para questões controversas. Um dos casos mais emblemáticos é o da Irlanda, que desde 2012 promove assembleias cidadãs sobre questões variadas como reforma constitucional, descriminalização do aborto e políticas climáticas. Essa série de assembleias é tida como um dos fatores relevantes para a recuperação do país após a crise econômica de 2008.

No caso brasileiro, a proposta é que os resultados das discussões da assembleia cidadã sobre a edição genética sejam apresentados a representantes da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e da CTNBio, entre outras instituições, e que o modelo possa ser replicado, futuramente, na discussão de outras questões críticas para a democracia do país.

Artigo publicado na edição de setembro de 2020 da revista Science apresentou a iniciativa à comunidade internacional. Um vídeo também aborda o projeto global. Leia nota técnica produzida pelos pesquisadores que conduzem o projeto. 

Outras informações estão no site da Global Citizens’ Assembly on Genome Editing.

Com informações da coordenação do projeto