Selo de pós-graduação lança ensaio sobre 'bandeirante incendiado'
De autoria de Daniel Bilac, mestre em Comunicação, livro analisa revolta contemporânea materializada no incêndio da estátua de Borba Gato, em São Paulo, há três anos
Há exatos três anos, em 24 de julho de 2021, uma estátua de Borba Gato, símbolo da escravidão em São Paulo, era incendiada por ativistas na capital paulista. Localizado no bairro de Santo Amaro, na zona sul da cidade, o monumento inaugurado em 1963, às vésperas da ditadura, homenageava o bandeirante e escravocrata Manuel de Borba Gato (1649-1718). Com 13 metros de altura, a estátua, construída ao longo de seis anos, era alvo de críticas de grupos e movimentos sociais por conta do papel exercido pelo bandeirante na colonização do interior do Brasil e nas consequentes tomadas de terras e escravização de indígenas e pessoas negras.
No aniversário desse evento que ganhou as manchetes de jornais, protagonizado pelo grupo Revolução Periférica, o selo editorial do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social (PPGCOM) da UFMG lança a obra digital Bandeirante incendiado: contestações de estátuas de tipo colonialista, de autoria de Daniel Bilac, mestre em Comunicação Social (UFMG, 2023). O livro, disponível gratuitamente no site do Selo PPGCOM, reúne textos que tratam desse episódio e de outras ações praticadas contra estátuas e monumentos, no âmbito das lutas antirracistas e anticolonialistas contemporâneas.
A publicação é resultado de pesquisa desenvolvida por Bilac – graduado em Artes Visuais com habilitação em Pintura (UFMG, 2011) – no âmbito do PPGCOM e defendida, como dissertação de mestrado, pelo autor, em 2023. O texto atual, revisado e adaptado, conta com prefácio da professora. Ângela Salgueiro Marques, do Departamento de Comunicação Social (DCS) e do PPGCOM, e posfácio do professor Marcos de Brum Lopes, historiador do Museu Casa de Benjamin Constant, do Rio de Janeiro. No ensaio, Daniel Bilac parte das acusações/classificações do ato como anacrônico e violento a fim de situar o acontecimento em um debate mais amplo, no qual figuram conceitos como agência das imagens, crítica histórica e relações de poder.
Reaparição sob tensão
Na apresentação do ensaio, dividido em quatro capítulos -- Perguntar a uma pedra, Três tentativas de interdição, Borba Gato incendiado, Ouvir da pedra uma pergunta --, Daniel Bilac defende que derrubar, queimar, rasurar, entre outras formas de se agir contra estátuas relacionadas ao colonialismo e ao racismo, como a de Borba Gato, não é, “como às vezes se pode ouvir”, “apagá-las, fazê-las desaparecer”. Para o autor, investidas como essa fazem, justamente, que essas estátuas e monumentos reapareçam, mas, desta vez, sob tensão.
Na perspectiva do autor, negar a possibilidade de tais gestos por supostos vícios de origem, classificando-os como ineficazes, anacrônicos e até mesmo violentos, seria um movimento pouco efetivo. “Por isso, acreditamos que, antes de mais nada, é preciso trabalhar desde o interior dessas tentativas de interdição, atravessá-las por dentro. Se chegarmos a ter algum êxito nesse esforço, poderemos enfim começar a compreender o quê e como essas imagens insurgentes procuram mostrar”, escreve.
Gestos de insurgência
Ângela Marques, que assina o prefácio, destaca que o papel da obra ensaística é instigar o leitor à reflexão acerca dos "gestos insurgentes de derrubadas de estátuas", ocorridos em cidades brasileiras e estrangeiras, situados no contexto da configuração de uma radicalidade classificada por ela como decolonial. "Marcos de memória podem trazer narrativas com significados bem diferentes para grupos sociais marcados de modos distintos pelo trabalho colonial de apagamento ou legitimação de determinadas existências".
Segundo a professora, a definição de um marco de memória, como pode se ver em escolhas como a construção de estátuas como a de Borba Gato, é um evento que “autoriza certas versões dos acontecimentos a conduzirem o modo como sujeitos e grupos percebem a história e assumem ou não seu pertencimento a ela". Nessa perspectiva, a revolta de determinados grupos sociais contra esses monumentos revela, para a professora, “constante tensionamento e disputa entre vitórias e dores de vencedores e vencidos.”
Espinho na carne
Em O evento da queimadura, posfácio do ensaio, o historiador Marcos de Brum Lopes propõe uma reflexão sobre os “entrelaçamentos entre a vontade de memória e a vontade de justiça, justificação, culpa e redenção”, por meio de Isak Borg, personagem do longa-metragem sueco Morangos silvestres (1957), de Ingmar Bergman. A certa altura, ele narra um evento do filme: “...um carro fúnebre puxado a cavalos colide com um poste, o caixão cai e se quebra. Isak Borg se aproxima, segura a mão do morto, que agora se move. O defunto é Isak Borg. Um duplo mortuário, um espelho macabro. Um sonho que impulsiona a revisão de toda uma vida.”
Para Marcos Lopes, no ensaio, Daniel Bilac comete outra transgressão, desdobramento da transgressão “maior e mais central”, que é o ato de incendiar o monumento de Borba Gato: enfrentar “o mito fundacional de uma certa identidade brasileira, o bandeirante e todo o seu espectro de atributos.” Para o historiador, a serventia do ensaio, nesse processo, precisa funcionar como o caixão de Isak Borg, no episódio narrado por ele: “como um espinho na carne da nossa história, um marco de prestação de contas. Até que, de tanto olhá-lo, nossos olhos queimem diante das telas que reproduzirão, ad infinitum, sua imagem de fogo. Até que seja sugado pela rasgadura no solo da cultura e não percebamos mais a sua ausência.”
Selo PPGCOM
Criado em 2014, o Selo PPGCOM é uma ação de extensão e divulgação científica da UFMG, com foco na difusão do conhecimento na área de comunicação social produzido na Universidade, em especial pesquisas desenvolvidas do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social. Todos os títulos são gratuitos e de acesso livre. O selo conta com site e perfil no Instagram. Outras informações podem ser solicitadas pelo telefone (31) 3409-5072 e pelo e-mail seloppgcom@gmail.com.
Livro: Bandeirante incendiado: contestações de estátuas de tipo colonialista
Autor: Daniel Bilac
Selo PPGCOM
192 páginas | e-book | gratuito