Pandemia pode sobrecarregar mais da metade das microrregiões de saúde do país
Colapso do sistema tende a ocorrer se, em um mês, 1% da população de cada unidade for infectada, projeta estudo da Face
O sistema de saúde brasileiro não comporta uma rápida escalada dos casos graves de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. Em um mês (até o fim de abril), se 0,1% da população em algumas microrregiões de saúde do Brasil estiver infectada já haveria sobrecarga dos leitos de UTI. Caso o percentual da população infectada em cada microrregião atingisse 1% em um mês, o sistema entraria em colapso, com 53% das microrregiões de saúde operando além de sua capacidade.
Essa projeção é feita em nota técnica publicada na última quinta-feira, 26 de março, por pesquisadores do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Faculdade de Ciências Econômicas e do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea). O estudo apresenta uma simulação com base em cenários distintos de infecção da população ao longo do tempo, que seriam determinantes para a oferta de leitos e aparelhos de ventilação mecânica nos casos graves da Covid-19.
Um dos autores do estudo, o professor e pesquisador do Cedeplar Gilvan Guedes chama a atenção para a particularidade do cenário atual, já que a pandemia representa uma demanda extra na capacidade de suporte regular do sistema de saúde brasileiro. “A capacidade do nosso sistema de saúde de absorver os tratamentos, em condições atípicas, é baixa. Os resultados mostram que praticamente todas as macro e microrregiões de saúde terão comprometida sua capacidade de oferta de leitos UTI”, relata.
De acordo com a simulação, caso 0,1% da população esteja infectada no período de um mês, 44% das microrregiões de saúde brasileiras estarão com sua capacidade de atendimento comprometida para leitos UTI. Mais preocupante é que 47% dessas microrregiões sequer oferecem esse tipo de unidade. A avaliação da capacidade de atendimento foi feita com base na oferta e demanda por esses equipamentos, considerando as 437 microrregiões de saúde do país.
Estrutura etária
Gilvan Guedes explica que o estudo se diferencia de outros realizados anteriormente por levar em consideração a estrutura etária de cada microrregião, uma vez que há risco diferenciado de agravo da infecção de acordo com a idade. “Além disso, ao simular esses cenários, consideramos também o perfil etário das infecções e o risco de hospitalização específico por idade. Isso faz nosso estudo realmente ponderar a capacidade de resposta do sistema de saúde local, considerando a demanda na relação com o nível de envelhecimento e as condições de agravo, de acordo com o perfil da população em cada microrregião”, afirma Guedes.
Outro diferencial importante do trabalho foi levar em conta a capacidade de oferta do sistema privado de saúde. “Mesmo incorporando o sistema privado, caso seja necessária uma intervenção pública, o cenário das UTIs é muito grave quando atingirmos 1% da população infectada em cada microrregião”, reforça o professor da Face.
O grande impacto no sistema de saúde teria início, de acordo com os pesquisadores, no momento em que até 1% da população estiver infectada com o novo coronavírus, embora com 0,1% os efeitos já seriam sentidos no caso de oferta de leitos de UTI. Foram analisados cenários da evolução das transmissões, considerando as dificuldades de se estimar uma média de propagação do vírus no país: em curto prazo – com seis meses, três meses e um mês – e em médio prazo, com seis e doze meses.
Comparação com outros países
Os dados analisados no estudo levam em conta o número de casos e mortes confirmados (2.555 e 59, respectivamente) até a última quarta-feira, dia 25. O último balanço divulgado pelo Ministério da Saúde, na tarde desta sexta-feira, 27, revelou 3.417 casos confirmados e 92 mortes.
Para estimar a demanda pelos equipamentos de saúde, também foram consideradas as taxas específicas por grupo de idade estimadas para os Estados Unidos, divulgadas pelo Center for Disease Control and Prevention (CDC). De acordo com o professor, os EUA guardam semelhanças com o Brasil no que se refere ao contexto da pandemia nos primeiros 30 dias de sua ocorrência. Na ausência de dados sobre a Covid-19 por perfil etário do Brasil, a utilização da informação de outro país em cenário semelhante pode contribuir para a análise.
Os pesquisadores do Cedeplar e Ipea estabeleceram esse paralelo com base na análise do comportamento da infecção no país com 30 dias da janela epidemiológica. “Nesse período, a evolução de casos confirmados com mortes no Brasil está acima do verificado na Itália. Aqui, foram 77 mortes, enquanto a Itália registrou 29. Nosso cenário, portanto, é mais preocupante se observarmos a taxa de letalidade no mesmo período”, comenta Gilvan Guedes.
No entanto, o professor da Face afirma que o emprego de dados de outras regiões tem limitações. Ele destaca que países e regiões têm capacidades diferentes de detecção de casos, em razão de algumas variantes, como a quantidade de testes que o sistema é capaz de realizar e o tipo de testagem utilizado, já que as diferentes modalidades também registram distintos percentuais de apresentação de falso negativo.
Distribuição dos leitos e equipamentos
De acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), em 2019, eram cerca de 6.700 estabelecimentos hospitalares, com oferta total de quase 271 mil leitos gerais, 34.460 leitos de UTI e 65.600 aparelhos de respiração mecânica. A oferta de leitos gerais nas simulações da nota técnica exclui os leitos pediátricos, hospitais-dia, especiais e obstétricos. No caso de leitos de UTI, ficaram de fora do estudo leitos pediátricos para utilização neonatal e por queimados.
São seis as microrregiões com menor número de leitos gerais, distribuídas no Norte e Nordeste do Brasil. Em 124 das microrregiões brasileiras, a oferta de leitos gerais pelo SUS é muito baixa – principalmente nos estados do Amazonas e Pará. A menor oferta de leitos pelo SUS está no Norte de Minas Gerais, na microrregião Manga, que possui 14 leitos, enquanto a microrregião São Paulo conta com a maior oferta, com mais de 8.300 leitos.
De acordo com o professor, os sistemas de saúde público e privado do Brasil têm capacidade de atendimento das demandas regionais no que diz respeito a leitos e respiradores em condições regulares, ou seja, na ausência de uma pressão extra. A preocupação é a sobrecarga que poderá ser exercida pela Covid-19 em áreas mais remotas, como municípios das regiões Norte e Nordeste. “Por causa das longas distâncias, no caso de agravo pelo coronavírus, as pessoas precisariam ser atendidas muito rapidamente em regiões mais próximas para evitar o óbito. Nesse sentido, a capacidade do sistema de prover equipamentos de deslocamento, como ambulâncias, seria fundamental para esses municípios”, comentou.
Gilvan Guedes alerta que um resultado claro do estudo é que, caso não seja viável a oferta de transporte nas regiões de vazios assistenciais, são elas as que apresentarão maior risco de gerar um colapso no sistema de saúde, pois também podem sofrer sobrecarga pela demanda dos municípios do entorno. “Nesse caso, não deve ser levada em conta apenas a oferta de ambulâncias, mas a adequação delas a uma pandemia provocada por um tipo de vírus altamente contagioso”, reforçou.
Dos mais de 34 mil leitos UTI ofertados no Brasil, 48% são disponibilizados pelo SUS. Oitenta e quatro microrregiões contam apenas com a oferta pelo SUS, e 15, somente com oferta privada. A nota técnica revela que 70% dos aparelhos de ventilação estão disponíveis no SUS e na maioria das microrregiões de saúde.
De acordo com o professor, a equipe está desenvolvendo uma atualização do relatório com a análise da oferta e demanda, considerando a distância percorrida pelo paciente, a oferta de transporte adequado para os casos de encaminhamento e a saturação do atendimento nas microrregiões.
Intervenção
O estudo apresenta uma projeção do que aconteceria com o sistema de saúde regionalizado, sob diferentes percentuais de infecção, caso não houvesse nenhuma política de intervenção do governo para atender à demanda extra gerada pela Covid-19. “A incidência de novos casos é maior em São Paulo, justamente o estado mais preparado para responder a essa pressão. No entanto, se essa expansão chegar a regiões onde há vazios assistenciais, a situação será dramática”, projeta o professor da Face.
Experiências internacionais foram bem-sucedidas para a contenção da transmissão, como a testagem em massa da população na Coreia do Sul, medida que favoreceu o isolamento das pessoas infectadas ainda no início da dispersão do vírus. Outros países, no entanto, não alcançaram êxito, como a Itália. “Observa-se que, no caso italiano, a demora em implantar uma politica agressiva de distanciamento da população revelou-se mais danosa para a economia do que o contrário. No Brasil, estamos no início dos casos de contágio, e o distanciamento é importante para reter essa aceleração”, defende o professor Gilvan Guedes.
Nota técnica: Análise de demanda e oferta de leitos hospitalares gerais, UTI e equipamentos de ventilação assistida no Brasil em função da pandemia da Covid-19: impactos microrregionais ponderados pelos diferenciais de estrutura etária, perfil etário de infecção e risco etário de internação.
Autores: Kenya Noronha, Gilvan Guedes, Cássio Turra, Mônica Viegas Andrade, Laura Botega, Daniel Nogueira, Julia Calazans, Lucas Carvalho, Pedro Amaral (Cedeplar/Face) e Luciana Servo (Ipea)