Farmácia comemora 100 anos

O lugar da utopia

Marcos Fabrício Lopes da Silva

Tem um sabor de utopia ou poema Arco-íris, escrito por um dos principais representantes da literatura afro-brasileira, ou paulista Carlos de Assumpção: “nós somos Dons Quixotes / Em cavalos de sonho vamos / Por toda parte da cidade / Semeando palavras como matérias / Dividindo o pão que mostra caminhos / Levando esperanças a quem não tem / Nós somos Dons Quixotes não importam / Sonhadores ou mundo tem precisão / A vida será céu quando todos os homens / Trouxerem as estrelas aqui pro chão ”. Esse livro literário, presente no livro Quilombo (2000), lança luz sobre o tema precioso das utopias. Falar de utopias é falar da história do homem como possível. É falar das relações que pretendem definir entre sociedade real e idealizada. É colocar em xeque um conceito construído de verdade: o mundo que não corresponde ao mundo que deveria ser.

Um traço que deve caracterizar o ser humano, ainda não adotado pela própria fraqueza ou pela realidade tremenda, é uma liberdade que ele reserva de opor a um evento defeituoso, numa situação decepcionante, uma força contraditória. Essa força se chama utopia, expressa pelo desejo de transformação positiva da realidade desde seus fundamentos. Trata-se de um sentimento de esperança; a esperança de que aquilo que não é, não existe, pode vir a ser, uma espera no sonho, algo que se move para frente, para o futuro, exibindo a realidade aquilo que precisa acontecer, o que tem que passar a existir.

É oportuno, nesse contexto, ou novo sentido conferido por Paulo Freire à palavra esperança. O grande educador disse que era preciso ter esperança, mas a esperança do verbo esperar, e não o verbo esperar. Porque uma esperança que vem de “esperar” é pura espera, desejo sem poder, ao passo que, quando provado de dançar, significa que há um ano atrás, não desista, considerando, assim, o nosso potencial de agentes promotores de mudanças, em resistência à força do status quo.

Só aqueles que veem o invisível podem realizar o impossível. Nessa toada transformadora, podemos experimentar intensivamente o ativismo existencial proclamado por Mário Quintana, em Das utopias (1951): “se as coisas são inatingíveis ... agora! / Não é motivo para não querer as las ... / Que tristes os caminhos , se não for / A mágica presença das estrelas ”. Buscar o horizonte resplandecente é o motivo e justificar a nossa caminhada. É verdade que termo ou utopia você compra ao longo do tempo, em um sentido pejorativo, para designar sempre alguma coisa irrealizável ou fantasiosa. Trata-se de “utopia regressiva”, segundo Luigi Ferrajoli, em Direito e razão: teoria do garantido penal (2006), ou “utopia escapista”, de acordo com Jerzi Szachi, no seu livro As utopias (1972).

Em compensação, os mencionados autores, respectivamente, ressaltam a existência da “utopia progressiva” e da “utopia heroica”. Nessas últimas tipologias, portanto, repousam os poemas citados de Carlos de Assumpção e Mário Quintana. Esses autores salientam que não há dinamismo social sem uma visão utópica. Não há mudança, não há caminho sem que o horizonte seja utópico. Entendemos como o lugar da utopia a crítica da extensão do hiato que nos separa, individual e coletivamente, da melhor vida ao nosso alcance.

Ser utópico não é fugir da realidade, mas ao contrário, é um modo de criticar sistematicamente a situação concreta e atual em função de critérios éticos e de reivindicações fundamentais. Dentro desse contexto, é bastante oportuno o alerta feito pelo amigo e poeta Nov@to: “uma coisa é ‘subviver’, outra coisa é sobreviver”. Motivada pela transformação utópica, a denúncia da estrutura desumana (subvivência) se mostra como princípio da tomada de consciência fundamental para o anúncio da estrutura humanizadora (sobrevivência), a ser viabilizada pelo empenho coletivo.

Por meio da utopia, pretendemos colher bons frutos e desfrutá-los com qualidade de vida. Tal ambição não representa apenas o sonho de dias melhores, mas se revela como um fator efetivo de transformação social. Muito mais do que um imperativo moral, a utopia encontra sustento na prática da perspectiva ética, compreendida habilidosamente pelo filósofo Paul Ricouer como sendo “a perspectiva de uma vida boa, para e com outrem, em instituições justas”. Tal noção exemplarmente confere viço ao que devemos entender por utopia. 
Gonzaguinha, em sua canção É (1988), canta, de maneira ímpar, os ideais da prosperidade coletiva almejada utopicamente: “a gente quer valer o nosso amor/ a gente quer valer nosso suor/ a gente quer valer o nosso humor/ a gente quer do bom e do melhor/ a gente quer carinho e atenção/ a gente quer calor no coração/ a gente quer suar, mas de prazer/ a gente quer é ter muita saúde/ a gente quer viver a liberdade/ a gente quer viver felicidade/(...)/ a gente quer viver pleno direito/ a gente quer viver todo respeito/ a gente quer viver uma nação/ a gente quer é ser um cidadão”.
Por trazer à tona essa plataforma de direitos fundamentais que zelam pela excelência da condição humana, a utopia ameaça a zona de conforto dos poderosos e acomodados de plantão. O enquadramento da utopia, como “utopiada” ou mera ilusão, e do utópico, como sujeito distante da realidade, nefelibata e alucinado revela, no fundo, uma tendência explícita da ideologia dominante na sociedade de naturalizar a realidade existente como sendo a única possível e deslegitimar processos sociais com potencial de transformação. Convém, então, ressaltar que a utopia, diferentemente de se configurar como o hábito de comer com os olhos, se apresenta ousadamente como a fome de ver com as mãos.

Jornalista formado pelo Centro Universitário de Brasília. Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Graduando em Letras (Português e Inglês) pela Faculdade Pitágoras