Academia translacional
O termo Medicina Translacional ou Ciência Translacional está na moda. Trata-se da aplicação, na clínica médica, dos conhecimentos da pesquisa nas áreas de ciências biológicas e da saúde e vice-versa. Vale ressaltar que o termo translação refere-se originalmente ao movimento de um corpo em relação a um centro de referência. Há muito tempo que o campo da astronomia vem ampliando o universo em que vivemos. Parece-me que a pesquisa e o ensino das ciências da vida não têm acompanhado as mudanças paradigmáticas que requerem o reposicionamento do pesquisador/educador no universo da prática científica e de formação. Apesar do amplo debate nas ciências humanas, nossa prática do fazer e ensinar ciência pouco mudou. Essa discussão não é trivial.
Venho suscitar essa discussão por dois motivos. O primeiro refere-se à oportunidade excepcional de abordar a Medicina Translacional na UFMG, no Simpósio sobre a Fosfoetanolamina. Esse assunto tem sido alvo de debates nos campos da mídia, da justiça, da academia, da política e da ética, gerando decisões judiciais, como proibição da distribuição do medicamento pela USP, medida provisória favorável à sua distribuição e a aceleração dos testes em diferentes formulações da fosfoetanolamina, legalmente exigidos pela Anvisa. Não entrarei nesse mérito.
Como educadora, venho relatar que, com alunos calouros do curso de graduação em Fonoaudiologia, complementamos a aula sobre membrana plasmática da disciplina Citologia e Histologia Aplicadas à Fonoaudiologia, acompanhando as apresentações dos palestrantes convidados e participando das discussões que se seguiram. Sabendo que a fosfatidiletanolamina é um dos fosfolipídios do folheto interno da bicamada fosfolipídica que compõe as membranas biológicas, esses calouros, curiosos, trouxeram de volta à sala de aula várias manifestações, dentre as quais a surpresa sobre a existência de células tumorais diferentes dentro de um mesmo tumor, as dúvidas sobre a relação entre pesquisa in vitro e in vivo e sobre a representação de resultados em gráficos, tabelas e imagens, como as de microscopia, que utilizamos na disciplina. Também surgiram questões sobre posições contraditórias de cientistas a respeito de um mesmo tema e sobre como resolver os impasses. Foi uma grande oportunidade de interseção ensino-pesquisa-extensão, que proporcionou aos discentes uma vivência acadêmica da produção de conhecimento científico e de sua aplicação clínica.
É desafiador para nós, educadores/formadores, expor os discentes à efemeridade do que ensinamos e aos aspectos não científicos envolvidos na construção do conhecimento. Percorrer com eles áreas controversas que também desconhecemos. Eles querem saber, basta deixá-los fazer as perguntas. Ressalto aqui a importância das possibilidades de formação propiciadas pela real integração e participação de docentes e discentes nas atividades que fundamentam a Universidade: Ensino, Pesquisa e Extensão.
O segundo motivo que me remete à Ciência Translacional é o incômodo gerado pela recente publicação do artigo Randomized Trialof Introduction of Allergenic Foods in Breast-FedInfants (Perkin, MR et al. New England Journal of Medicine 374:18,2016). Trata-se de um estudo com bebês entre três meses e três anos de idade para avaliar a eficácia da introdução precoce de proteínas na dieta como forma de prevenção do desenvolvimento da alergia alimentar. O estudo conclui que o protocolo foi ineficaz e que o efeito preventivo da introdução precoce dos alimentos seria dependente da dose utilizada. Tal estudo é um exemplo de como a Medicina Translacional, considerada como inovação tecnológica, com retrospectiva bibliográfica de cinco anos “recomendada” pelos orientadores, negligencia saberes estabelecidos na ciência.
Ora, essa área de Imunologia das Mucosas é estudada, na UFMG, pelo professor Nelson Vaz e seu grupo desde 1984. Trabalhando em Denver e em Nova York nos anos 1970, Vaz “esbarrou“ no fenômeno da “tolerância oral” ao estudar a genética da resposta imunológica em camundongos, quando descobriu os genes Ir (resposta imune). O grupo do imunologista Baruj Benacerraf, contemporâneo do de Vaz, também estudou a genética da resposta imunológica em porquinhos-da-índia e foi agraciado com o Prêmio Nobel pelo trabalho.
Vaz, entrentanto, foi além. Mostrou que a supressão da resposta imunológica, inclusive a alérgica, é possível pela ingestão prévia das proteínas por camundongos, fenômeno dependente desses mesmos genes, hoje
conhecidos como MHC. Ao longo de 40 anos, ele vem mostrando a influência da idade dos animais, da dose utilizada por via oral e do adjuvante utilizado na imunização posterior. Novos aspectos da imunobiologia foram descritos pelo grupo, como o fenômeno de estabilidade imunológica, o efeito do envelhecimento, o papel da oligoclonalidade em reações alérgicas, autoimunes e parasitárias e os efeitos sistêmicos indiretos da tolerância. Esses fatores se mostraram importantes ferramentas de intervenção na inflamação sistêmica, na regeneração de tecidos, na reprodução vivípara e no diabetes. Apesar disso, esses trabalhos seguem negligenciados pela comunidade científica. Trata-se de um exemplo de fazer científico inovador, mas sua complexidade epistemológica talvez não esteja ao alcance de especialistas em imunologia e de demais pesquisadores na área biológica. Poderia ser diferente.
Traduzindo: assim como o progresso que escolhemos resultou na explosão da bolha financeira e em uma catástrofe para as populações pobres mundo afora, a ciência produtivista, considerada de excelência, explode agora em meio a milhares de publicações não lidas e, lamentavelmente, em uma onda de article retractions por plágio, revisões suspeitas e outras práticas inadequadas do ponto de vista científico e ético. Pergunto-me qual é o efeito dessa escolha na formação dos nossos discentes e na comunidade externa. Acredito que a UFMG pode oferecer coisa melhor.
*Professora do Departamento de Morfologia do ICB