Retorno ao humano
UFMG sedia prévia de conferência global que busca recolocar as humanidades como protagonistas da reflexão sobre as soluções dos conflitos vividos
No campo intelectual, corre certo entendimento de que, no Brasil e no mundo, após a Segunda Guerra Mundial, as humanidades perderam centralidade e foram relegadas gradativamente a um segundo plano na cena do conhecimento e da estruturação funcional das sociedades – em razão das pretensões tecnicistas e pragmáticas que surgiram na modernidade e na pós-modernidade. Ao mesmo tempo, alcançou-se o século 21 com a sensação de que as promessas de progresso sugeridas nesse cenário não foram cumpridas a contento, restando um mundo atravessado por impasses talvez ainda mais complexos que os do século passado.
É nesse contexto que a UFMG sedia, de 4 a 7 de outubro, a Conferência internacional sul-americana: territorialidades e -humanidades, que integra as -comemorações dos 90 anos da Universidade. O evento será realizado como atividade preparatória da Conferência Mundial das Humanidades, que ocorrerá em Liège, na Bélgica, em 2017, com a pretensão de “refundar as ciências humanas, retomando o seu lugar na sociedade contemporânea e aprofundando a dimensão transdisciplinar da pesquisa, em face das necessidades da humanidade no século 21”, como anuncia o site do evento.
Recentemente, por exemplo, vimos as humanidades serem excluídas do programa Ciências sem Fronteiras, algo que questionamos muito.
Coube à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) – por meio de seu Conselho -Internacional para Filosofia e Ciências Humanas – escolher a UFMG como sede da prévia sul-americana da conferência global. Para a vice-reitora Sandra Goulart Almeida, que preside o Comitê Científico do evento, a decisão do órgão constitui importante deferência para a Universidade. “A reflexão sobre o lugar que as humanidades devem ocupar no cenário científico contemporâneo é muito relevante não apenas no contexto global, mas também para nós, brasileiros. Recentemente, por exemplo, vimos as humanidades serem excluídas do programa Ciências sem Fronteiras, algo que questionamos muito. Então, essa questão diz respeito diretamente ao Brasil dos últimos anos”, afirma.
Desafios
Luiz Carlos Villalta, professor do Departamento de História da Fafich e presidente do Conselho Consultivo do evento, afirma que a Unesco defende a necessidade urgente de se fomentar globalmente um amplo debate sobre o assunto. “A Unesco tem um entendimento claro de que o papel das ciências humanas na construção do futuro da humanidade foi problematicamente relegado a um segundo plano a partir dos anos 1950 do século 20”, explica o professor. “Os desafios que o contemporâneo nos impõe – políticos, econômicos, sociais, demográficos, culturais, ecológicos e religiosos – exigem que ofereçamos à sociedade um retorno das reflexões produzidas no campo das humanidades”, diz.
Com foco na promoção desse debate, a programação da conferência sul-americana foi estruturada em dez eixos temáticos: Fronteiras e migrações; Identidades e línguas; Gênero e diversidade cultural; Relações com a terra e o campo; Controle social e habitabilidade; Ecologia e meio ambiente; Direito e educação; Espaço urbano e violência; Materialidades e representações; e Desenvolvimento social e inovações. Essas subtemáticas orientam tanto as dez mesas-redondas que ocupam os quatro dias de programação quanto as 35 comunicações coordenadas que serão realizadas na quinta-feira, dia 6 – além das mais de cem apresentações de pôsteres já confirmadas para o mesmo dia.
"Em Belo Horizonte vamos abordar temáticas caras ao evento de Liège: a questão da relação do ser humano com o território, os espaços das novas identidades, os novos contextos de diversidade”
Participam das atividades professores e pesquisadores de instituições de ponta oriundos de países como Argentina, Bolívia, Colômbia, Estados Unidos, Peru, Portugal e Uruguai, além de pesquisadores que atuam na UFMG e em outras universidades do Brasil. Para Sandra Goulart Almeida, em razão da densidade dessas participações, a conferência vai propiciar reflexão sobre as ciências humanas em um contexto transdisciplinar, dialogando com outras áreas do conhecimento. “Aqui em Belo Horizonte vamos abordar temáticas caras ao evento de Liège: a questão da relação do ser humano com o território – assunto importante no atual cenário global das migrações e fronteiras –, os espaços das novas identidades, os novos contextos de diversidade”, enumera. Entre os participantes estrangeiros confirmados, estão Maria Luisa Soux, da Bolívia; Michel DeGraff e Rosalind Hackett, dos Estados Unidos; Ochy Curiel e Maria Alejandra Saleme Daza, da Colômbia; Erika Marion Robrahn González e Luiz Oosterbeek, de Portugal; Jorge Gelman, Marcelo Sain e César Lorenzano, da Argentina; Leonel Cabrera, do Uruguai; e Fernando Ortega, do Peru.
Fora da academia
O evento também contará com palestras e participação em mesas-redondas de personalidades que, não sendo necessariamente pesquisadores ou acadêmicos, são -atores proeminentes em campos de atuação relacionados à temática do evento, como João Pedro Stédile, membro da direção nacional e um dos fundadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Hebe de Bonafini, líder das Mães da Praça de Maio, movimento de mães de filhos desaparecidos durante a ditadura militar na Argentina; Hamilton Borges, representante de campanha que articula movimentos de resistência contra a violência policial direcionada a populações negras na Bahia; Joceli Andrioli, representante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); Leonardo Péricles, representante do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), que se mobiliza pela reforma urbana, entre outros.
A professora Susanna Hecht, da Universidade da Califórnia (UCLA), fará a conferência de abertura. Ph.D. em Geografia, Hecht realiza pesquisas no âmbito da ecologia política, com foco na América Latina, em especial, a Amazônia. Sandra -Goulart Almeida coordenará a atividade. Já o encerramento será realizado por John Crowley, da Unesco, em palestra coordenada por Luiz Oosterbeek, secretário-geral do Conselho Internacional de Filosofia e Ciências Humanas (CIPSH) da Unesco e membro da coordenação do Ano Internacional do Entendimento Global. Em suas pesquisas, John Crowley se interessa especialmente pela temática da migração, das relações raciais e das mobilizações das minorias. Crowley é líder de equipe da Unesco para a temática “mudança ambiental global”.
Informações sobre a programação podem ser consultadas no site do evento, que contou, da concepção à realização, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de MG (Fapemig).
Planeta em transição
O evento sediado pela UFMG servirá de preparação para a Conferência Mundial das Humanidades, que será realizada em Liège, Bélgica, de 6 a 12 de agosto de 2017. Serão cerca de 1800 participantes de todos os cantos do planeta e de áreas como política, ciência, arte e comunicação, além de representantes de entidades governamentais, não governamentais e supranacionais.
Com o tema Desafios e responsabilidades para um planeta em transição, a conferência é organizada pela Unesco, por meio de seu Conselho International para Filosofia e Ciências Humanas (ICPHS, na sigla em inglês), e pelo movimento LiègeTogether.
De acordo com os organizadores, o objetivo é “promover reflexão de alcance global sobre as Humanidades e seu lugar em um mundo policêntrico, de uma perspectiva transcultural”.
A abordagem da conferência está baseada em seis principais desafios postos para a comunidade internacional, na visão da Unesco: o crescimento da população; a reorganização de territórios; os fluxos migratórios; impasses energéticos e ambientais; a padronização cultural à luz da globalização e a estruturação de novas identidades; a emergência da sociedade digital, que leva à divisão social.