Da cozinha à ficção
A relação íntima entre a vida das sociedades e a história da alimentação tem sido, cada vez mais, alvo do interesse de pesquisadores da UFMG. No Departamento de História, José Newton Meneses, Anny Jackeline Torres e Betânia Figueiredo, entre outros, visitam quintais e hospitais mineiros de séculos passados. No Departamento de Nutrição, José Divino Lopes estuda conflitos e coincidências entre a força da tradição e as recomendações da ciência. Na Faculdade de Letras, Sabrina Sedlmayer [leia na página 8] coordena projetos que investigam como a comida espalha seus aromas pela ficção literária.
Quintais nas Minas Gerais
Há pouco tempo, quando visitou uma casa na região do Barreiro, em Belo Horizonte, o professor José Newton Meneses, do Departamento de História, deparou com um quintal que em tudo lembrava as representações presentes em seus estudos dos quintais urbanos e rurais das Minas Gerais do final do século 18 e início do século 19. Da cozinha para fora, encontram-se, em geral, nessa ordem, temperos e ervas medicinais, hortaliças, frutas, animais e engenhocas, como moinhos d’água.
“Os quintais são primordiais para se entender a cultura setecentista e oitocentista de Minas”
Ele explica que o quintal era lugar de caráter doméstico, íntimo – onde se recolhiam as mulheres, que ali exerciam seu poder, e as crianças, que ali eram educadas. E constituía, ao mesmo tempo, espaço de interface com a vizinhança, na medida em que servia à produção de alimentos e ao abastecimento da vila, por meio de trocas e venda de excedentes.
“Os quintais são primordiais para se entender a cultura setecentista e oitocentista de Minas”, comenta o pesquisador, que interpretou inventários post mortem, documentos administrativos e iconográficos e narrativas de viajantes estrangeiros, como o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire e o mineralogista inglês John Mawe, que circularam por terras mineiras nos primeiros 20 anos do século 19. A respeito dos quintais que conheceu, Mawe deixou registrada a abundância de frutas, incluindo “uma variedade de frutas indígenas, doces e ácidas, principalmente a jaboticaba, cheia de substância mucilaginosa [espessa]”.
José Newton Meneses salienta que o gosto cultivado na cozinha era estreitamente relacionado com o que se produzia nos quintais, tanto para a mesa (carnes, verduras) como para a sobremesa (conservas de frutas no açúcar, que podiam ser consumidas e vendidas em qualquer época).
O acervo iconográfico é também revelador do espaço, a um só tempo, de intimidade e função socioeconômica. A Planta do Arraial do Tejuco é uma das que retratam paisagem urbana dominada pelos quintais. O documento mostra pomares e hortas, vegetações diversas e edificações afastadas da casa que serviam à criação de animais ou ao abrigo das máquinas que beneficiavam os produtos cultivados.
Se a visita ao Barreiro confirmou a força da tradição dos quintais preservada nas casas mineiras, outra lembrança, mais remota, remete ao poder desses espaços como reserva de intimidade de pessoas bem próximas. José Newton rememora os antigos festivais da jaboticaba em cidades como Virginópolis, sua terra natal. “Se se deixa por conta da natureza, a fruta dá só uma vez por ano, e essa é uma ótima desculpa para o culto dos laços familiares e de amizade”, completa o professor.
Tradição e ciência: encontros e contradições
“As comidas não sejam carregadas de sal pelo dano que muito sal causa na saúde”, preconizava o regulamento do Colégio Caraça. No início do século 19, os padres educadores faziam recomendações que caberiam muito bem nos dias de hoje. Mas a relação da história da alimentação humana, que tem centenas de milhares de anos, com a ciência da nutrição, nascida há pouco mais de dois séculos, não é feita apenas de encontros. Longe disso. É grande a lista de diferenças.
“A comida deixou de ser uma unidade integral. Ela é fonte de nutrientes, que, em diferentes quantidades, produzem efeitos distintos.”
“O conflito entre tradição e conhecimento ainda vai durar muito tempo, mas trabalhamos para conciliar os hábitos dos diversos grupos com o que sabemos hoje sobre as necessidades alimentares e os efeitos dos alimentos na saúde”, comenta o professor José Divino Lopes, do Departamento de Nutrição da Escola de Enfermagem.
Autor de estudos como o do Caraça – que revela associações entre o conhecimento empírico e o saber científico –, ele lembra que a ciência se apropria dos registros históricos, e ambos subsidiam descobertas que alteram a maneira de se encarar a alimentação. “A comida deixou de ser uma unidade integral, que apenas classificamos de quente, fria, sólida ou cremosa”, diz o pesquisador. “Ela é fonte de nutrientes, que, em diferentes quantidades, produzem efeitos distintos.”
E seria a ciência da nutrição capaz de engendrar uma nova cultura alimentar? Para José Divino Lopes, sim, mas os hábitos têm-se alterado em ritmo lento. Ele cita o exemplo da epidemia da obesidade, “prova de que o conhecimento, por si só, não muda comportamento na velocidade desejada”.
“A necessidade de rever preferências e técnicas de preparo dos alimentos enfrenta poderosos interesses econômicos. A indústria cria mercadorias travestidas de alimentos, preparações ultraprocessadas à base de amido, açúcares e gorduras, agregadas de sabores”, afirma Divino Lopes.
Além de ações educativas e mudanças na legislação – como a sobretaxação de produtos perniciosos como as bebidas açucaradas –, gestores e cientistas recorrem aos costumes para preservar a saúde. “Em certas situações, o fortalecimento da tradição cultural pode ajudar comunidades a resistir às tentações criadas pela indústria, mas devem ser feitos alguns ajustes baseados em consensos como o de que a ingestão excessiva de gordura animal está associada à mortalidade.”
O professor observa que o esforço para conhecer a história da alimentação e, ao mesmo tempo, o impacto dos alimentos sobre o organismo visa “possibilitar escolhas menos sofridas e preservar a saúde, que é, assim como a vida, um patrimônio finito”.
Cura pela comida
O consumo de alimentos não está relacionado apenas à sobrevivência e ao prazer. Comida também cura. Por isso, as investigações sobre a história da saúde lançam mão de documentos e testemunhos do uso -terapêutico da alimentação. Na UFMG, pesquisadores do Scientia – Grupo de Teoria e História da Ciência, vinculado ao Departamento de História, se debruçam sobre o abastecimento, ao longo do século 19, das despensas dos hospitais de caridade de São João del-Rei e Diamantina, que têm acervos significativos e bem preservados.
Nas listas de compras desses hospitais, predominam, entre outros produtos, galinha, pão e milho – na Europa, na mesma época, apareciam, com frequência, trigo, arroz, carne e peixe. Frutas, legumes e verduras são pouco mencionados, possivelmente porque chegavam na forma de doações ou porque eram cultivados pela própria instituição – hipótese reforçada pelo registro de compras de material para manutenção de pomares e hortas.
O trabalho de interpretação dos documentos parte do pressuposto de que repouso e alimentação oferecidos pelas instituições eram, em muitos casos, suficientes para a melhora do internado. “Isso ocorria, sobretudo, nas Santas Casas, onde os pacientes eram, em sua maioria, pessoas pobres, com carências de alimentos básicos, que não raro se recuperavam só com apoio de prescrições como ‘canja de galinha gorda’”, afirma a professora Betânia Gonçalves Figueiredo, autora de A arte de curar: cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século 19 em Minas Gerais (Fino Traço, 2008).
A pesquisa produz banco de dados com documentos que cobrem da segunda à última década do século 19 (trabalhados, por ora, em intervalos decenais). Já foram processados os dados relativos a 1825 e 1835, que estão consistentes com o resultado da pesquisa de mestrado de Adriana da Costa Vieira, sobre a dieta dos enfermos da Santa Casa de Misericódia de Vila Rica (1793-1796), orientada por Betânia Figueiredo.
Os pesquisadores do Scientia recorrem a manuais e às teorias do período para refletir sobre os procedimentos médicos – como as sangrias e os vomitórios – e as recomendações alimentares aos doentes. Essas últimas eram geralmente pautadas em receituários e dietários padronizados: dieta nº 1, canja feita de arroz e açúcar; dieta nº 2, caldos de galinha; dieta nº 3, caldos de vaca ou vitela, com acréscimo de pão.
“Paralelamente às práticas curativas postas em ação nessas instituições, o projeto também focaliza a organização dos serviços e o seu ambiente físico, para iluminar as transformações por que passaram os hospitais no decorrer do século 19”, afirma a professora Anny Jackeline Torres Silveira.