Lógica Repensada
Em novo livro da Editora UFMG, professor do Reino Unido propõe abordagem não dogmática para paradigmas da lógica
Na obra-prima de Cervantes, Sancho Pança se torna governador de uma ilha e juiz de seu tribunal. Conforme a lei de uma propriedade do lugar, aquele que passasse por certa ponte teria de dizer aonde e a que estava indo. Se jurasse a verdade, poderia passar; se mentisse, seria imediatamente enforcado. Em dado momento, Sancho se vê diante de um homem que, ao chegar à ponte, jura que a atravessaria apenas para morrer na forca. É quando surge o dilema: se ao homem fosse permitido passar, ele teria mentido e, portanto, deveria ser enforcado. Mas, se fosse enforcado, tal como jurou, ele teria dito a verdade – portanto, deveria ter obtido a permissão de atravessá-la sem sofrer punição.
O professor Stephen Read, da Universidade de St. Andrews, no Reino Unido, vale-se de paradoxos como esse para estabelecer uma original introdução à filosofia da lógica em Repensando a lógica, livro recém-publicado pela Editora UFMG. No volume, o professor busca se opor ao que afirma ser uma “pedagogia dominante”: certa tendência do ensino de filosofia de “elaborar cursos introdutórios de lógica dogmáticos e formais”, relegando a “estudos posteriores” as discussões sobre o que subjaz filosoficamente a lógica. Para Read, essa veneração acrítica à lógica é profundamente equivocada. “Que um princípio, caso verdadeiro, seja necessariamente verdadeiro, não é garantia alguma contra o erro”, afirma. Com efeito, em seu livro, o professor busca tornar acessível ao leigo a investigação da lógica como repositório de problemas filosóficos instigantes, em vez de repetir a simples apresentação inflexível dos paradigmas próprios da disciplina.
Para o professor do Reino Unido, o fato de a lógica lidar com o inevitável – ou seja, com as inevitáveis consequências de um dado conjunto de premissas – não deve ser motivo para que esse campo fique imune ao autoquestionamento. Daí a relevância dos paradoxos para a discussão que o autor propõe: eles têm a particular capacidade de pôr em xeque os próprios pressupostos a partir dos quais são construídos. “Seu real valor filosófico reside na depuração dos pressupostos infundados e não criticados que os produziram”, escreve Read. “Eles exigem soluções, e em tais soluções nós aprendemos mais acerca da natureza da verdade, da natureza da consequência lógica e da natureza da realidade do que qualquer exame amplo dos princípios fundamentais pode nos fornecer”.
Na dúvida...
Repensando a lógica se divide em oito capítulos temáticos, que são desfechados por resumos e contam com farta indicação de leituras extras. Os capítulos tratam de noções como a verdade e suas variadas teorias, a ideia de consequência lógica, as proposições condicionais, o platonismo modal e a suposição de realidades alternativas, as implicações da linguagem para o que se entende como existência ou realidade e os mais variados tipos de paradoxos – dos mais simples, como o que abre este texto, aos mais complexos, como aqueles em que as premissas não podem ser rejeitadas. No último capítulo, o autor volta ao problema da verdade pela perspectiva de um “desafio construtivista”. E, ao fim, a obra traz um índice remissivo e um pequeno glossário.
Quanto ao dilema enfrentado por Sancho Pança, o desfecho rememorado por Stephen Read é iluminador. Na impossibilidade de encontrar solução satisfatória para o paradoxo que enfrentava, Sancho opta por seguir um conselho oferecido pelo amo Dom Quixote: quando a ação justa nos parece duvidosa, devemos simplesmente agir com clemência. O novo governador ordena aos responsáveis pela ponte que simplesmente deixem o homem passar e dá a questão por encerrada. Afinal, “sempre é mais louvado o fazer bem que mal”, diz Sancho, na obra de Cervantes.