Economia do desastre

Sobre estacionamentos e sariemas*

Nas minhas andanças por espaços do campus Pampulha, tenho percebido que o ritmo acelerado pauta, em grande medida, nosso cotidiano e nos ameaça distanciar de aspectos simples da vida humana. Digo isso pensando no quão estranhos muitos de nós nos tornamos ao migrar da condição de pedestres para a de condutores de veículos pelas ruas e avenidas do campus. 

Salvo melhor juízo, como não condenar o comportamento irracional de um condutor de veículo automotor – carro, motocicleta, ônibus, caminhão – que ignora as regras de trânsito e não pratica a norma de dar a preferência para pessoas que tencionam atravessar as vias nas faixas de pedestre?

Sou do parecer de que a “esperança pode mais que o temor”, como escreveu o teórico Celso Lafer, em texto de apresentação do atualíssimo livro Sobre a violência, da filósofa política alemã, de origem judaica, Hannah Arendt. É claro que estamos todos muito ocupados, com a “corda sempre no pescoço”, o que tornaria a correria justificável. Mas... será?

Lembro, com certo saudosismo, de uma campanha educativa que o Centro de Comunicação (Cedecom) e a Pró-reitoria de Administração, com apoio do Sindifes, da Apubh e do DCE, lançaram em 2011, denominada Bocados de Gentileza, que, em sua chamada, trazia a seguinte proposta: “Que tal mudar um pouco o seu cotidiano? O que você acha de tornar o ambiente ao seu redor um pouco melhor? A UFMG convida você a se engajar na campanha Bocados de Gentileza. Essa campanha busca promover uma mudança de atitude nos membros da comunidade universitária, ressaltando a contribuição das pessoas para uma boa convivência nos campi. Em uma primeira fase, iremos abordar problemas relativos a trânsito, lixo e conservação das áreas verdes. Ao longo de todo o ano, iremos tratar de vários assuntos e temáticas de interesse da comunidade universitária e da sociedade em geral. [...] Participe! A gentileza atrai, encanta e contagia as pessoas!”

Cabe aqui justificar o motivo do saudosismo em relação a essa campanha, que tinha como mascote a Graciosa, nome escolhido para a ave que já nos acostumamos a encontrar mergulhando no lago da Biblioteca Central em busca de peixes. Às vezes, a disputa por vagas de estacionamento nos afasta quilômetros da manutenção de relações cordiais entre nós. Na ânsia por estacionar, atropelam-se o bom senso e as normas mínimas, valentemente sinalizadas em locais espalhados pelo campus.

Na condição de responsável por um desses espaços – o estacionamento ao lado da Biblioteca Central –, certa vez me vi tentando conclamar o meu bom senso e o de alguns outros usuários do local para uma questão que deveria ser óbvia para todos. Falávamos  ao mesmo tempo, com a intenção de encontrar um denominador comum que não se pautasse pelo “jeitinho” e pela invenção de vagas que não existem. Com os ânimos exaltados, não conseguíamos perceber o quão ridícula e lamentável era aquela situação, marcada pelo palavrório desconexo –  uma cilada da rotina maquínica que não abria espaço para o trato urbano, gentil, que deveria ser corriqueiro, sobretudo no local de trabalho e estudo.

Aliás, o bom convívio é, para nossa vergonha, regulado por leis. O trato respeitoso, com urbanidade, é preconizado pelo Regime Jurídico Único (RJU), previsto na Lei 8.112 e no Decreto 1.171, de 22 de janeiro de 1994, que aprovou o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal.

Para nossa salvação, eis que, de repente, aproxima-se do grupo uma sariema. Claro que aquela ave, de canto muito característico, que durante o dia vive nos descampados, não foi notada. Estávamos muito concentrados em nossa discussão para percebê-la. Essa visita só poderia ser um sinal que apenas consigo minimamente compreender com o auxílio do professor de teoria da literatura Hans Ulrich Gumbrecht e com os sentidos que ele atribui à “experiência estética na vida cotidiana”.

A chegada da sariema naquele momento, com uma das patas machucada, ousadamente postada próximo a nós, ilustra um dos sentidos do conceito de Gumbrecht. Fico pensando que nessas relações sociais cada vez mais coisificadas, destituídas de humanidade, perversas até, a aparição e a estada persistente da ave naquele estacionamento são como um recado de uma presença contumaz inflada de positividade, que poderia ter vários nomes e que até poder-se-ia chamar de Deus, a nos lembrar que sempre será possível chegar a um lugar mais ameno, mais respeitoso, mais gentil, mais cortês. Algo de que as atribulações e a dureza da rotina cotidiana têm nos afastado, ainda que eu não concorde com esse afastamento. 

Nesse sentido, somos de muita sorte e agradecemos à sariema por nos lembrar que é necessário o retorno da gentileza. Seria interessante avivarmos os anseios daquela campanha de 2011 que tratava da óbvia preferência, nas faixas de pedestre, que deve ser conferida às pessoas em detrimento dos veículos. É urgente vociferar menos, caros motoristas, com os colegas condutores quando formam diminutas filas para deixar atravessar, em local apropriado, os pedestres que aqui circulam.

As sariemas serão sempre bem-vindas, sobretudo para golpear nossas consciências hiperatarefadas, proporcionando-nos um incômodo, uma possibilidade de significar o núcleo duro do real, agenciando um rompimento no fluxo da rotina, detonando uma pequena crise, um desvelamento do ser que, nos parâmetros da experiência estética da vida cotidiana, nos ponha para repensar nossas relações sociais.

*Variação de seriema < tupi sari’ama, “crista em pé” (HOLANDA FERREIRA, 1986, p. 1574)

**Servidor técnico-administrativo em Educação, bibliotecário-documentalista, doutor em Letras/Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Dirige a Biblioteca Universitária/Sistema de Bibliotecas da UFMG

Wellington Marçal de Carvalho