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Valor de Memória

Cecor restaura livro de 1817 pertencente à Irmandade de Santa Cecília, de Ouro Preto

Um livro contábil de dois séculos atrás, restaurado pelo Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Cecor) da UFMG, será devolvido em breve à Irmandade de Santa Cecília, de Ouro Preto (MG). O Livro primeiro de receita e despeza da Irmandade de Santa Cecília erecta na freguesia do Ouro Preto desta Villa integrava o Acervo Curt Lange, incorporado em 1995 às coleções especiais da Biblioteca Universitária. Em 2012, o documento foi identificado por uma pesquisadora de Ouro Preto, e a Irmandade reivindicou sua propriedade. 

Após análise do Conselho Curador do Acervo Curt Lange e da Procuradoria Jurídica, a UFMG concordou em devolver o volume e propôs entregá-lo restaurado. Em missa realizada em 2013, foi feita a entrega simbólica do livro à Irmandade de Santa Cecília, formada, originalmente, sobretudo por músicos negros, mas também por padres, freiras e órfãos. Santa Cecília é a padroeira dos músicos.

Lombada do livro da Irmandade de Santa Cecília antes e depois do trabalho do Cecor: funcionalidade restaurada
Lombada do livro da Irmandade de Santa Cecília antes e depois do trabalho do Cecor: funcionalidade restaurada Divisão de Coleções Especiais/BU

Segundo a bibliotecária Diná Araújo, chefe da Divisão de Coleções Especiais e Obras Raras, a UFMG não poderia entregar o livro no estado de degradação em que se encontrava. “Se para nós ele tem valor de pesquisa e patrimônio, para a Irmandade soma-se o valor de memória.” Ela ressalta que o objetivo não foi fazer uma restauração estética, mas recuperar a funcionalidade do livro e possibilitar seu manuseio.

O volume acumulava várias áreas com perda de suporte no dorso, e as folhas de guarda (que seguram a encadernação ao dorso do volume) estavam rompidas. Esses problemas provocaram desgaste na costura e separação dos cadernos, mas nenhuma folha foi perdida. “Em 1998, quando o livro recebeu tratamento de conservação, houve a preocupação de não apagar as marcas históricas, apenas eliminar sujidades (poeira, manchas etc.) e acondicioná-lo, mas sem as intervenções e resultados de um procedimento de restauração”, explica Diná Araújo. 

Ainda que o livro esteja recuperado, o Conselho Curador do Acervo Curt Lange recomendou à Irmandade que mantenha rígido controle de acesso ao material e determine uma pessoa treinada para o manuseio. Essas e outras orientações estão ­registradas em documento específico.

Lombada do livro da Irmandade de Santa Cecília antes e depois do trabalho do Cecor: funcionalidade restaurada
Lombada do livro da Irmandade de Santa Cecília antes e depois do trabalho do Cecor: funcionalidade restaurada Claudio Nadalin/Cecor



Intervenção em duas fases

O trabalho de restauração do Livro primeiro de receita e despeza da Irmandade de Santa Cecília foi feito de maio a setembro de 2013, pelas professoras Bethania Veloso e Ana Utsch, da Escola de Belas Artes, e pelas assistentes Carolina Concesso e Raquel Augustin, então estudantes do curso de Conservação-Restauração. A intervenção envolveu diferentes modalidades de procedimentos, em duas fases, para recuperação do corpo da obra e da encadernação.

Na primeira fase, de acordo com Ana Utsch, como a estrutura da encadernação estava muito fragilizada e era necessário realizar inúmeras intervenções nos fólios – que apresentavam sujidades, perfurações por ataque de insetos, rasgos, abaulamento, abrasão, vincos, marcas de manuseio e manchas –, a equipe optou pelo desmonte temporário do livro, seguido dos diferentes procedimentos de higienização e reconstituição de suporte (tamponamento, remendos, enxertos, velaturas etc).

“Na segunda fase, tratamos os elementos remanescentes da encadernação, também fragilizados com lacunas, abrasão e

ressecamento. Esse esforço incluiu reconstituição do couro com enxertos, consolidação das áreas abrasionadas/quebradiças e remontagem do livro, que compreendeu, naturalmente, uma nova costura. Todo o trabalho foi baseado em estudo bibliológico e codicológico sobre os modos de produção da encadernação de origem.

A equipe de restauração encontrou, no estofo da encadernação (material interno que dá sustentação às capas revestidas pelo couro e que são hoje realizados em papelão), documentos do século 19 que contêm registros de escravos. Em razão de sua natureza histórica, eles também foram tratados e acondicionados em caixa individual, que hoje acompanha a obra restaurada. O estofo original foi substituído por cartões, e os documentos, preservados com outro estatuto.

O livro está disponível em versão digitalizada: http://bit.ly/2pY0nk4.

Itamar Rigueira Jr.