Museus, turismo e controvérsias
A temática escolhida para comemorar, neste ano, o Dia Internacional dos Museus (18 de maio) – instituído em 1977 pelo Conselho Internacional de Museus (Icom), da Unesco, com o objetivo de sensibilizar o público para a importância dos museus na sociedade – provoca efervescentes reflexões, que ampliam e reavivam debates imprescindíveis sobre esse campo de estudos. O tema deste ano é Museus e histórias controversas – dizer o indizível em museus, com base na premissa de que esses ambientes podem ser compreendidos como “agentes da assimilação de histórias traumáticas de nossas sociedades, graças à mediação e à pluralidade de pontos de vista”, como salienta texto publicado pelo Ibermuseus. Assim, o Icom pretende destacar o papel dos museus como instrumentos capazes de fomentar relações mais pacíficas entre os povos e, desse modo, favorecer sua reconciliação.
Embora possa parecer um tanto utópica, essa perspectiva põe em jogo múltiplos aspectos da relação que os museus, nas suas distintas e variadas formas, estabelecem com o mundo contemporâneo.
Dos vários desdobramentos suscitados pelo tema, ressaltamos um sentido subjacente: os museus estão longe de ser lugares de consonância – são, antes, espaços de controvérsias. Quando situações polêmicas ainda não estão estabilizadas em um campo de estudos, entra em ação o que o filósofo e antropólogo Bruno Latour denominou “controvérsias”. A Cartografia das Controvérsias é adotada como método de pesquisa que envolve um conjunto de técnicas para explorar e visualizar polêmicas e discutir questões às quais a teoria é vulnerável. Mapear controvérsias é ir de declarações e da literatura aos diversos agentes (humanos e não humanos) que compõem situações complexas e de conflito, que produzem ação sobre outro. O tema do Dia Internacional dos Museus faz mesmo emergir, como está explícito no projeto do Icom para 2017, a complexidade de histórias pouco conhecidas ou incompreendidas que os museus abrangem.
Apesar de, nos séculos seguintes, depois de uma série de transformações econômicas, culturais e políticas, ter havido um alargamento do ingresso de público aos museus, os “não iniciados” não eram bem-vindos. Normas de comportamento, como a exigência do uso de trajes cerimoniais, foram adotadas para a devida admissão nesses espaços, o que já denotava atitude desconfiada e pouco acolhedora ao público em geral.
O mapeamento e a análise de controvérsias compõem um dos métodos de investigação que adotamos no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Turismo e Museus, vinculado ao Grupo de Pesquisa Turismo, Cultura e Sociedade, instalado no Programa de Pós-graduação em Turismo (PPGTUR), da Universidade Federal Fluminense (UFF), e registrado no CNPq desde 2010.
Ao trabalharmos com a temática Turismo e museus, uma das principais controvérsias que identificamos está na própria relação entre museus e turismo. Tende a parecer tácita e homogênea tal imbricação, uma vez que a visitação turística e o recebimento desse tipo de público por essas instituições já é algo frequente e naturalizado. Mas cabe destacar que os museus, desde a abertura das grandes coleções, no século 15, quase sempre viveram histórias controversas com seu público. Apesar de, nos séculos seguintes, depois de uma série de transformações econômicas, culturais e políticas, ter havido um alargamento do ingresso de público aos museus, os “não iniciados” não eram bem-vindos. Normas de comportamento, como a exigência do uso de trajes cerimoniais, foram adotadas para a devida admissão nesses espaços, o que já denotava atitude desconfiada e pouco acolhedora ao público em geral.
Resultados de diversas pesquisas apontam para a continuidade desse distanciamento, nem sempre explícito, entre esses dois fenômenos sociais. Especialmente no Brasil, carente de estudos específicos sobre o público de turistas em museus – a maioria das pesquisas não separa os turistas do público espontâneo, como fazemos em nosso grupo – e de ações técnicas que proporcionam qualificação dos museus para o turismo, raras são as instituições preparadas para atender a essa demanda.
Da mesma forma, a área do turismo, como atividade econômica, não costuma ir muito além da utilização dos museus, ora como “equipamento”, ora como atrativo para ser consumido pelo segmento denominado Turismo Cultural, em que se desconsideram especificidades relevantes das instituições museológicas para que haja a prática do turismo sustentável.
Porque causam mal-estar social, controvérsias são recorrentemente camufladas. Mas o não dito, o indizível, acaba por se revelar nas experiências vividas, tornando evidentes os ruídos dessa relação. Se os museus devem se converter em polos para a promoção de relações pacíficas entre os povos, possibilitando uma visão de futuro, para além de temas tabus, como enfatiza o Icom, é preciso, em primeiro lugar, saber lidar com os dissensos. E, como afirmou Mia Couto, no encerramento da 23ª Conferência Geral do Icom, em 2013, assumir os museus como espaços “capazes de criar uma relação emancipadora com a sociedade e com os tempos que se costuram nessa mesma sociedade”. Essa talvez seja a única reconciliação possível.
*Museóloga, com pós-doutorado em Antropologia na Universidade Federal Fluminense (UFF). Vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Turismo da UFF e coordenadora do Grupo de Pesquisa Turismo, Cultura e Sociedade