Para não julgar pela capa
UFMG recebe “biblioteca humana”, instalação em que pessoas estigmatizadas se oferecem para serem “lidas” pelo público
Se livros transformam pessoas, como se afirma no senso comum, que poder não teriam livros que, em vez de inanimados, fossem, de fato, vivos, podendo interagir com os leitores? Essa é a proposta da instalação Livro vivo, que será montada no gramado da Reitoria no Dia Nacional de Luta Antimanicomial, 18 de maio, no âmbito da 5ª Semana de Saúde Mental e Inclusão Social da UFMG. A instalação visa possibilitar que os leitores da comunidade acadêmica tenham acesso a obras que pensam, falam, sentem e sofrem – às vezes, demasiadamente.
A instalação funciona como uma biblioteca orgânica e efêmera: nela, os livros são de fato pessoas, que, em um ato de generosidade, se abrem para serem “lidas” pelo público, em suas dores e alegrias, impasses e resoluções, receios e desejos. O objetivo da ação é promover experiências de empatia não mediadas e de reconhecimento do outro em suas singularidades.
A biblioteca foi composta exclusivamente por quem vive diariamente a experiência da estigmatização, como cegos, surdos, cadeirantes, indígenas, obesos, pessoas com sofrimento mental e mulheres vitimadas pela violência doméstica, entre outros indivíduos. “São pessoas que enfrentaram e enfrentam, cotidianamente, situações limítrofes de discriminação”, explica a professora Stella Goulart, que coordena o projeto Arte na loucura, do Programa de Extensão em Atenção à Saúde Mental (Pasme). Ela é responsável pela instalação e coordena equipe composta de professores, estudantes e técnicos administrativos e ativistas da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental.
A instalação Livro vivo é inspirada na ideia de Biblioteca Humana (http://humanlibrary.org), cujo embrião surgiu na União Europeia (UE) nos anos 2000, já com foco na luta contra o estigma e os preconceitos. De lá para cá, ações do gênero foram realizadas em diversas partes do mundo. No Brasil, contudo, é apenas a segunda vez que uma instalação do tipo é realizada.
A versão que será mostrada aqui é desdobramento do convênio de amplo escopo firmado entre a UFMG e a Universidade de Estudos da República de San Marino, da Itália, e é inspirada na experiência dessa universidade na atenção a pessoas que enfrentam a estigmatização. A instituição integra o movimento da Psiquiatria Democrática Italiana (PDI), pioneiro no combate aos manicômios e na campanha pela revisão dos estatutos jurídicos relativos às doenças mentais. O professor Ernesto Venturini, de San Marino, sugeriu que instalação fosse montada na UFMG.
Catálogo de sentimentos e vivências
Cerca de 20 livros serão disponibilizados para leitura nas “prateleiras” do pequeno bosque da Reitoria. “Vamos reproduzir a especificidade da dinâmica de quando entramos em uma biblioteca, conversamos com a bibliotecária e escolhemos um livro na estante para ler. É um momento íntimo, de profunda transformação, que se diferencia de palestras, rodas de conversa e conferências”,diz Stella.
A instalação será realizada em duas sessões de 40 minutos, uma às 9h e outra às 10h30, ambas abertas ao público: “Apenas limitamos a experiência a um máximo de três leitores por livro, de modo a garantir um contexto de proximidade verdadeira e potencializar a relação de intimidade entre o leitor e o livro”.
Stella Goulart, que é professora da Fafich, alerta que alguns cuidados são importantes em uma instalação como a que vai ocupar o gramado da Reitoria. “Quando pegamos um livro em uma biblioteca, não podemos escrever nele, marcá-lo. Precisamos cuidar da sua integridade, manuseá-lo com atenção, tratá-lo com cuidado. Essas premissas são ainda mais importantes para os livros vivos, que têm a particularidade de se transformarem por meio da experiência de leitura daqueles que se propõem a abri-los”, compara.
O evento será coroado pela Mesa da Thereza, intervenção da artista Thereza Portes que propõe um banquete de encontros e delícias, no qual será literalmente escrito o Livro aberto da luta antimanicomial nas universidades, entre o cafezinho coado no mancebo e os biscoitinhos mineiros. ”O local e o universal se encontrarão em um território livre, acolhedor, transdisciplinar e poético”, conclui a professora Stella Goulart.